ÁLVARO MONTENEGRO VALLS: "O conceito de angústia entre a psicologia e a religião"
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O interesse que vem despertando a leitura de Kierkegaard entre nós confirma um veredicto de Michael Theunissen, que escreveu, há 15 anos:

 

Numa época em que se espalha a tendência de aplainar a diferença de Filosofia e Literatura, de argumentação e retórica, um autor como Kierkegaard, que era indissociavelmente pensador e poeta, tem que atrair para si um novo interesse.[1]

 

Leio Kierkegaard como filósofo, ou seja, como pensador de argumentos vinculantes. Com Theunissen leio as análises deste autor a partir de seus pressupostos antropológicos: que o ser humano é uma síntese, que tem um Self e que este Self é posto por Deus.[2] Dadas essas premissas, eis minha hipótese básica, a de que o livro sobre o conceito de angústia é um livro especificamente filosófico, que, embora fale profusamente de Adão e (da possibilidade) do pecado, ele explicita que não pretende ser um tratado da Dogmática, e se inscreve na Psicologia, tal como se entendia esta “ciência” nos tempos de Hegel e de Rosenkranz, i. é, como parte da doutrina dialética do espírito subjetivo. O conceito de angústia é livro de filosofia, que usa o método dialético-existencial. E embora inaugure, na Introdução, a noção de uma 2ª. Ética, baseada na Dogmática e não na Metafísica, ele se define como obra de Psicologia, - hoje diríamos Antropologia filosófica, não fossem as críticas de Heidegger a essa expressão. Ou deveríamos denominá-la uma “analítica da existência”, caso a analítica não exclua a dialética?

Haufniensis critica Schelling por misturar Metafísica e Dogmática. Não obstante, o livro de 1844 leva leitores menos avisados à impressão de que estaria a tratar da realidade do pecado, um conceito teológico, revelado. E jamais afirma sua realidade de fato, só analisa sua possibilidade ideal, conceitual: ou seja, como o ser humano precisaria ser para poder pecar, - e o que o levaria a agir assim? Teria agido por necessidade? Teria seguido uma tal de concupiscência?  Ou teria um livre-arbítrio absoluto, não contraditório?

As análises centrais da liberdade humana (com suas condições transcendentais) e da temporalidade parecem confirmar a asserção de que se trata de uma obra de Filosofia. Filosofia dinamarquesa do século XIX, que não temia trazer à colação temas bíblicos, refletindo, porém, racionalmente sobre eles, tal como o fizera o falecido (em 1838) professor de Moral e de Filosofia grega Poul Martin Møller, mestre querido e pranteado de Kierkegaard, e destinatário da tão bela dedicatória da obra.

Por que o autor ilustra tantas análises com a figura bíblica de Adão, comparado com o chamado homem posterior? Adão é figura mítica, é hipóstase ou é paradigma? Qual a função da figura de Adão no desenvolvimento do tratado? Qual o significado filosófico da questão da “possibilidade” do pecado? Não é que Haufniensis esteja a basear-se na narrativa do Gênesis supondo-a como uma descrição de um fato ocorrido há 6.000 anos.[3] Kierkegaard diz, desde o início, que “o primeiro” é o que dá a qualidade. O primeiro amor é o amor, o primeiro pecado é o pecado, o primeiro homem é o homem. Assim, falar o tempo todo de Adão é apenas adotar um termo conhecido para refletir sobre o homem, em seus fundamentos. Outro problema surge quando se fala de Adão: o da historicidade do fenômeno. Embora experiência única a cada vez, o pecado pré-existe ao meu pecado, pelo qual introduzo o pecado no mundo. A afirmação da hereditariedade do pecado nos faz refletir sobre a historicidade do gênero humano: o que representa, no que tange à liberdade humana, o fator hereditário? É da liberdade humana que Kierkegaard fala, na tradição agostiniana, mas utilizando polemicamente uma apresentação popular da Lógica hegeliana publicada em dinamarquês pelo Pastor Adler, doutor por Berlim.

Sendo impossível, em 20 minutos, resumir as análises da historicidade, da liberdade, das maneiras de sua perda na queda, mencionemos ao menos a contribuição do capítulo V, em que a angústia é tratada no seu valor positivo, como experiência imprescindível. O Cap. V inicia citando o jovem sem medo do conto dos irmãos Grimm, o mesmo que dará forma ao jovem Siegfried (que oscila, no Anel, entre Feuerbach e Schopenhauer). Wagner e Kierkegaard nasceram ambos em maio de 1813, no mesmo ano que o pai de Nietzsche. Mas, se os hiperbóricos nietzschianos sem-temor (e sem Deus) pretendem ter superado a angústia, nosso autor nórdico prefere deixar de lado o personagem e ficar com a própria angústia como sua heroína. E enquanto os heróis buscavam realizar em nossas coxilhas, façanhas que “servissem de modelo a toda a terra”, o autor do tratado acha melhor colocar o indivíduo nas charnecas da Jutlândia - onde nada ocorre e o alçar vôo de uma perdiz talvez seja o único evento do dia - para que este discípulo da possibilidade aprenda então a ser livre como homem, usando da própria angústia como libertadora da finitude, o que não significa, decerto, difamar a vida, mas é a forma certa de buscar uma eternidade que não consista tão somente numa eterna repetição do sempre igual.

Ao trazermos Wagner e Nietzsche para nosso texto, acabamos de dar razão a Theunissen no veredicto antes citado. Passemos então a outra parte, verificando de que modo o próprio Kierkegaard, pela pena de Climacus, no Post-scriptum, interpretou o significado “filosófico” desta obra que Heidegger chama o Tratado da angústia.

* * *

O livro de 1844 é obra de filosofia. Um texto, porém, que inicia e termina com citações enigmáticas do pensador alemão Hamann precisa ser questionado sobre o título de Tratado, que lhe estamos emprestando. Como ler O conceito de angústia?

Ser e tempo responde, em nota de rodapé: o que há de mais filosófico para se aprender com o dinamarquês estaria nos “escritos edificantes”, com a honrosa exceção de um tratado, ainda mais filosófico, o “Tratado da angústia”.[4] A angústia existencial teria sido tratada com profundidade e originalidade pelo pensador de Copenhague, o qual, porém, nos conceitos ontológicos, estaria totalmente sob o domínio hegemônico de Hegel. Heidegger esquece ou ignora que na Estética se lê que, por abstratos, dos sentimentos (como “angústia”: Angst) não temos conceitos... E 20 anos depois, um “tratado sobre o conceito da angústia”? Teria Heidegger interpretado bem as intenções do autor do livro de 1844?

Por sorte, há aqui um testemunho privilegiado, já que o livro de Haufniensis vem a ser resenhado pelo próprio Kierkegaard (melhor: por Climacus), em sua olhada panorâmica sobre a literatura dinamarquesa contemporânea. Climacus reconhece que o hoje chamado “Tratado” gozou, desde o início, de um certo favor, certa graça, da parte dos professores. Estranho que os eruditos do Centro de Pesquisas de Copenhague, editores dos SKS, não consigam nomear nenhum dos professores ou “docentes” a que Climacus se referia. Mas o Professor Martin Heidegger seria certamente um deles, dada a nota do § 45 de ST:

 

Por isso pode-se aprender, de filosofia, mais de seus escritos ‘edificantes’ do que dos teóricos, - excetuando daí o Tratado sobre o conceito da angústia.[5]

 

Climacus credita à forma acadêmica do escrito a graça encontrada:

 

É à forma do escrito, um pouco docente, que se deve, indubitavelmente, que ele, mais do que qualquer outro dos pseudônimos, tenha encontrado migalhas de graça aos olhos dos docentes.[6]

 

Climacus, porém, assumindo uma certa paternidade cúmplice sobre o livro que se supõe ser de Haufniensis, considera um mal-entendido esta preferência dos docentes:

 

Que eu encaro este favor como um mal-entendido, não nego, e neste sentido muito me alegrou que simultaneamente fosse publicado um livrinho divertido de Nicolaus Notabene.[7]

 

Climacus se refere aos Prefácios, publicado como leitura de entretenimento. Se se tratava do mesmo autor, a seriedade aparente do tratado viria a contrastar com seu livro gêmeo, nascido no mesmo 17 de agosto. Mas Climacus reconhece sem rodeios a forma diferente do livro de 1844, pois diz que:

 

“o conceito angústia” se diferencia essencialmente dos outros escritos pseudônimos porque a forma dele é direta e até mesmo um pouco docente.[8]

 

Não obstante a forma um pouco “docerende”, com um jeito de ensinar comum aos professores universitários, talvez o suposto tratado seja uma exceção dentro de um projeto existencial, que busca a interiorização e a seriedade do existir. Não se trata de uma seriedade acadêmica, teorética, “seriedade de parágrafos”, em forma sistêmica, mas sim daquela seriedade da mesma ciência que é evocada na Doença para a morte, de 1849.

 

Nesse sentido, foi bom que o escrito se constituísse numa investigação psicológica, que explica ela mesma que o pecado não pode encontrar lugar no Sistema, presumivelmente como imortalidade, fé, paradoxo e outras coisas semelhantes que se relacionam essencialmente com o existir, de que precisamente o pensamento sistemático desvia o olhar. A palavra “angústia” não nos leva, em absoluto, a pensar numa importância sistêmica, mas na interioridade da existência.[9]

 

Caricaturando a Psychologie de Rosenkranz, e argumentando dialeticamente em nível filosófico, Haufniensis, não colabora com o Sistema, mas tenta uma comunicação de poder, que passa por uma provisória “comunicação de saber”: seu discurso direto pertence a uma estratégia maior, fundada na comunicação indireta.

 

Talvez o autor tenha achado que aqui neste ponto poderia ser necessária uma comunicação de saber antes que se pudesse passar para uma interiorização que se refere àquele que se supõe essencialmente como sapiente e que não precisa ficar sabendo de mais alguma coisa, e sim de ser influenciado.[10]

 

O Conceito de angústia não é, se Climacus o compreende bem, um livro abstrato, sistêmico, capaz de captar o pecado em sua rede conceitual. Fala de Adão e Eva, sem ser Exegese bíblica. Kierkegaard personificava os problemas: sensualidade em Don Juan, dúvida em Fausto, desespero no Judeu errante, fé em Abraão, ser-cristão em Paulo... Por que não personificar, na figura de Adão, a liberdade, capaz de por o pecado?

O livro de 1844 é obra complexa, difícil de ler, numa primeira percorrida. É um livro que choca e repele, ao mesmo tempo em que atrai. Desperta simpatia e antipatia. Mas é livro de filosofia, não primeiramente de teologia, pois investiga dialeticamente, com fortes argumentos, as condições transcendentais de possibilidade do agir livre de um homem, que se diz “gerado e nascido no pecado”. Qual a melhor maneira de lê-lo? Climacus sugere uma leitura existencial. Distingamos no pensamento de Kierkegaard um aspecto crítico (corretivo) e outro propositivo (se não sua teoria ou doutrina, ao menos sua mensagem, sua proposta na comunicação de poder, sugerindo o que podemos e talvez devamos fazer). O corretivo aparece na pena de Haufniensis, que combate a confusão, a mistura do estético com o religioso, do lógico com o teológico, da mediação lógica com a soteriológica, do sentimentalismo com a verdadeira contrição do pecador, da especulação teológica com a pregação, e quando combate a irreflexão (Tankeløshed) dos pastores.

                                                                                          * * *

C) Surgiu no Brasil uma leitura sistêmica, não existencial, de Kierkegaard, que privilegia a teoria dos estádios. Mimetizar o estilo dos filósofos da academia, vale, é claro, como esforço de legitimação do trabalho conceitual sobre o pensador danês. Mas quiçá Climacus tenha encontrado uma formulação bem mais feliz para caracterizar a investigação de Haufniensis, quando reúne o tema tangenciado sempre, o do pecado, com a temática das esferas e com a perspectiva existencial:

 

O pecado é decisivo para toda uma esfera da existência, para a esfera religiosa no sentido mais rigoroso. (...) A interioridade do pecado, enquanto angústia na individualidade existente, é o afastamento maior possível e o mais doloroso da verdade, quando a verdade é a subjetividade.[11]

 

Por trás dos pseudônimos aparece um pensador preocupado, como o médico à cabeceira do paciente, com o sentido de nossa existência, compreendida, por sua vez, como realização pessoal diante de Deus. O autor que aí visualizamos se teria mantido fiel à decisão vocacional que surgiu na carta a Lund, de 1835, em que desistia da carreira de cientista para dedicar-se às “questões do sentido”. E que, talvez por isso, se tornou também, como dizia Heidegger, “um escritor religioso”.



[1] In einer Zeit, in der die Tendenz sich ausbreitet, den Unterschied von Philosophie und Literatur, von Argumentation und Rhetorik einzuebnen, muss ein Author wie Kierkegaard, der untrennbar Denker und Dichter war, ein neues Interesse auf sich lenken. Michael Theunissen, Der Begriff Verzweiflung. Korrekturen an Kierkegaard, stw, Frankfurt am Main 1993, p. 7.

[2] Theunissen 1993, p. 16.

[3] Sabemos que no meio do século XIX muitos ainda acreditavam que o mundo fora criado havia 6.000 anos, tendo o Dilúvio ocorrido 1.500 anos mais tarde. O naturalista Dr. Lund, dinamarquês contemporâneo de Darwin, contraparente de Kierkegaard e conhecido de nossos colegas de Minas Gerais como o pesquisador da Lagoa Santa, escavava ainda, como Kierkegaard escreverá em 1850 em seus Diários, fósseis “ante-diluvianos”. (Que, hoje datados de mais de 8, 10 ou 12 mil anos, seriam então não só ante-diluvianos mas também anteriores aos dias da Criação!)

[4] Im 19. Jahrhundert hat S. Kierkegaard das Existenzproblem als existentielles ausdrücklich ergriffen und eindringlich durchdacht. Die existentiale Problematik ist ihm aber so fremd, daß er in ontologischer Hinsicht ganz unter der Botmäßigkeit Hegels und der durch diesen gesehenen antiken Philosophie steht. Martin Heidegger, Sein und Zeit, 14. Aufl. Tübingen : Max Niemeyer 1977, p. 235, nota 1 ao final do § 45.

[5] Daher ist von seinen ‘erbaulichen’ Schriften philosophisch mehr zu lernen als von den theoretischen – die Abhandlung über den Begriff der Angst ausgenommen. Ibidem.

[6] SKS 7, 245.

[7] SKS 7, 245.

[8] SKS 7, 245.

[9] SKS 7, 244.

[10] SKS 7, 245.

[11] SKS 7, 243-244.

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