É sabido que Kierkegaard elaborou sua antropologia em torno de conceitos como angústia e desespero, conceitos pelos quais foi muitas vezes tomado por autor melancólico ou depressivo. As perguntas que movimentam a escrita deste texto buscam compreender a antropologia de Kierkegaard e o processo de tornar-se si mesmo em relação com os conceitos de angústia e desespero articulados no horizonte do conceito de responsabilidade. O processo de tornar-se si mesmo é detalhadamente discutido por Kierkegaard em A Doença para a Morte, obra assinada pelo pseudônimo Anti-Climacus e publicada em 1849. Neste livro, o conceito de desespero desempenha papel central e nos coloca diante de perguntas importantes: como o ser humano pode ser responsabilizado pelo seu próprio desespero? Embora Kierkegaard entenda que o desespero é universal, ele afirma que cada indivíduo é responsável por seu próprio desespero. O indivíduo se torna desesperado. Mas como acontece esse processo? Nesse ponto, as articulações presentes em O Conceito de Angústia (1844) podem ser esclarecedoras para que se compreenda o papel ativo do indivíduo e sua responsabilidade no que diz respeito a tornar-se desesperado. Por outro lado, este entendimento é fundamental para que se compreenda a responsabilidade no processo de tornar-se si mesmo procurando eliminar esse mesmo desespero.
Em 1849 Kierkegaard publica, sob o pseudônimo Anti-Climacus, A Doença para a Morte (normalmente traduzida para o português como O Desespero Humano). Já no início de A Doença para a Morte nosso autor parece ter em mente uma das perguntas fundamentais levantadas por Kant: “o que é o ser humano?” Assim, depois de belos prefácio e introdução, Anti-Climacus abre o desenvolvimento propriamente dito da obra afirmando: “o ser humano é espírito”. E o autor continua:
[...] Mas o que é espírito? Espírito é o self. Mas o que é o self? O self é uma relação, que se relaciona a si mesma, ou o é na relação, que a relação se relaciona a si mesma; o self não é a relação, mas a relação se relacionando a si mesma. O ser humano é uma síntese do infinito e do finito, do temporal e do eterno, de liberdade e necessidade, em resumo, uma síntese. Uma síntese é uma relação entre dois. Assim considerado o ser humano ainda não é um self.
Alguns comentadores de Kierkegaard percebem nesse trecho difícil e intrincado uma paródia irônica da prosa hegeliana. Embora eu não negue que neste, como em outros textos, Kierkegaard possa ironizar Hegel ou os hegelianos de sua época, penso que a passagem citada tem uma relevância fundamental para a antropologia de Kierkegaard. De acordo com esta definição antropológica de Anti-Climacus, uma pessoa nasce humana, trata-se de um dado antropológico a priori. Entretanto, um ser humano não é necessariamente um self, não é necessariamente si mesmo. O self envolve um processo de tornar-se. O self não é a simples junção de elementos polares, o que ainda guardaria um dualismo antropológico, mas uma relação autoconsciente, uma relação que se relaciona a si mesma na medida em que envolve um processo ativo de realização por parte do sujeito. Além disso, é a partir dessa definição antropológica que Anti-Climacus poderá desenhar a sua análise do desespero, a doença para a morte. Não fosse o ser humano determinado enquanto espírito, enquanto relação, não poderia nem se angustiar, nem desesperar. O desespero surge como conseqüência da má relação da síntese consigo mesma, bem como para com Deus, entendido como o poder que estabeleceu a síntese.
O ser humano é constituído por elementos polares. A vida de cada pessoa é determinada, por exemplo, por elementos de necessidade, seja o lugar e a família onde nasceu, características físicas e biológicas, as limitações impostas pelo ambiente social, etc. Ao mesmo tempo, de diferentes formas é possível ao ser humano experimentar liberdade em meio a estes elementos determinantes.[1] Por diferentes razões, se pode fugir de tornar-se um self tanto em direção à infinitude e possibilidade, quanto em direção aos aspectos finitos e determinados da vida. Uma pessoa pode, por exemplo, descomprometer-se de tudo e de todos em direção à possibilidade e infinitude no afã de exercer sua “liberdade”, ou, por outro lado, pode aferrar-se à finitude e necessidade dando as costas à possibilidade. É no uso dessas categorias polares que Anti-Climacus pode tecer toda uma cartografia do desespero enquanto má realização da síntese.
Esse desespero é, para Anti-Climacus, um fenômeno universal. Segundo o autor, “assim como o médico poderia dizer que provavelmente não há uma única pessoa em vida que seja completamente sadia, assim também aquele que conhece o ser humano pode dizer que não vive uma única pessoa na qual não haja um pouco de desespero”.[2] Todo ser humano vive, de alguma forma, em maior ou menor grau, em desespero. Disso não segue, entretanto, que o desespero seja necessário. Embora esteja presente em todas as pessoas cada indivíduo desespera por si mesmo. De acordo com Anti-Climacus:
Desespero é a má relação na relação de uma síntese que se relaciona a si mesma. Mas a síntese não é a má relação, ela é apenas a possibilidade, ou na síntese está a possibilidade da má relação. Se a síntese fosse a má relação então o desespero absolutamente (slet ikke) não existiria, então o desespero seria algo que estaria (laae) na natureza humana como tal, ou seja, não seria desespero; ele seria algo que aconteceu a uma pessoa, algo que ela sofreu, como uma doença, da qual a pessoa foi acometida, ou como a morte, que é o destino de cada um (Alles). Não, desesperar está no próprio ser humano (Mennesket selv); mas se ele não fosse síntese, absolutamente não poderia desesperar, e se a síntese não estivesse originalmente, como vem da mão de Deus, na correta relação, ele também não poderia desesperar.
Se a síntese não estivesse originalmente na correta relação o desespero seria ontológico e, para Anti-Climacus, já não seria mais desespero. Entretanto, se a síntese está originalmente na correta relação, como, então, é possível a desestabilização da síntese? Este processo fora detalhadamente descrito (não explicado) em 1844, cinco anos antes da publicação de A Doença para a Morte, em O Conceito de Angústia.
Em O Conceito de Angústia o autor pseudônimo Vigilius Haufniensis procura enfatizar que o indivíduo é responsável pela própria desestabilização da síntese, o que de acordo com a terminologia teológica usada na obra será chamado de pecado – e que Anti-Climacus descreverá como desespero em toda a primeira parte de A Doença para a Morte. Não se trata de uma questão natural ou de algo herdado. É nesse sentido que Vigilius Haufniensis discute com a tradição teológica e filosófica e discorda da interpretação Agostiniana do problema do pecado original. Discorda também das soluções encontradas na Reforma (que grosso modo retomavam Agostinho) ou ainda daquela de Hegel e dos hegelianos que interpretavam a passagem da inocência para a culpa como algo progressivo – fazendo da diferença entre inocência e culpa mera diferença quantitativa, impedindo que se distinguisse radicalmente entre dois estados distintos.
Toda a discussão com relação ao problema do pecado original envolve tanto uma discussão antropológica quanto uma discussão ética. Por quê o ser humano age mal (ou se torna mau)? Trata-se de algo que está na natureza humana em si? Trata-se de algo pelo qual o próprio indivíduo é responsável? Na linguagem de Anti-Climacus: como a síntese se desestabiliza? Como pode o ser humano ser responsabilizado pelo próprio desespero?
É no contexto dessas questões que a angústia aparece como conceito chave. De acordo com Vigilius Haufiniensis o ser humano se angustia diante da possibilidade de efetivar suas possibilidades. O que angustia é a possibilidade. Mas a possibilidade é em si desconhecida e, nesse sentido, é nada[3]; o objeto da angústia é nada. Por isso a angústia é diferente do medo, que tem um objeto fixo e determinado.
Angústia é algo como a sensação que experimentamos quando diante de um abismo, algo que repele mas que simultaneamente atrai “[...] uma antipatia simpática e uma simpatia antipática”.[4] Esta ambigüidade da angústia fala de um aspecto universalmente humano, diz do modo como experimentamos nossa liberdade. Cotidianamente, vivenciamos situações onde nos sentimos atraídos para direções opostas. Uma pessoa quer efetivar suas potencialidades, mas ao mesmo não quer; quer sair da posição segura onde se encontra em direção a novas experiências, mas ao mesmo tempo não quer. Tal ambigüidade angustiada é como uma vertigem da liberdade diante da possibilidade:
A angústia pode ser comparada com a vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente vertigem. Mas qual é a razão? É tanto o seu olhar quanto o abismo. Não tivesse ele encarado a fundura!... Assim também, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer pôr a síntese, e a liberdade então fixa os olhos no abismo de sua própria possibilidade e aí agarra a finitude para segurar-se.[5]
A angústia não diz respeito propriamente a cair no abismo ou ser empurrado (o que caracterizaria o medo), mas a efetivar a própria possibilidade em direção ao desconhecido (...talvez pulando no abismo). Ou seja, o que está em jogo na angústia é a força da interioridade. Tudo gira em torno de um salto. De um lado temos a síntese – na correta relação – e de outro o desespero – a síntese em uma má relação consigo mesma – ou, na terminologia de O Conceito de Angústia, de um lado temos a inocência e, de outro, o pecado. É fundamental para Kierkegaard que tal passagem de um estado a outro não é algo progressivo, mas algo que acontece por um salto. Durante muito tempo este processo foi explicado supondo que haveria em Adão um desejo de efetivar sua possibilidade [o que, em terminologia teológica foi chamado de concupiscência]. O desejo aumentaria progressivamente até o ponto de se tornar “efetivamente” pecado ou desespero. A queda, o mal, seria explicado de modo progressivo. O problema é que, nesse caso, não consegue mais determinar em que medida o ser humano é responsabilizável pelo seu ato. A progressão no que diz respeito a entrar no desespero torna todas as determinações nebulosas – onde a ética se perde. Para Haufniensis o que a possibilidade desconhecida gera não é propriamente desejo, mas angústia. A angústia auxilia a compreender a sensação experimentada pelo ser humano quando confrontado pela sua possibilidade, o ser humano colocado à beira de seu próprio abismo.
O salto, entretanto, é inexplicável, não há mediações que o esclareçam. Com o uso do conceito angústia, Kierkegaard procura mostrar que, seja em Adão ou em cada um de nós, o que há é uma angústia que nos aproxima de nossas próprias possibilidades. Não há nenhum mecanismo progressivo que explique a desestabilização da síntese. A angústia descreve a caminhada até o abismo, mas não pode explicar o salto em si. Por outro lado, a angústia é fundamental para esclarecer justamente que a desestabilização da síntese não está na natureza humana como tal nem acontece por um processo necessário.
A angústia diz do modo como experimentamos nossa liberdade diante de nossa própria possibilidade; é algo ontológico que não explica o salto mas que ajuda a descrever o processo pelo qual o ser humano passa. O salto em si é inexplicável, donde surge o desespero. Mas o desespero, diferente da angústia, não é ontológico; por isso, usando terminologia teológica Kierkegaard poderá dizer que o desespero é pecado, mas o mesmo ele não dirá da angústia.
O conceito angústia ajuda a compreender que não há nada de necessário na desestabilização da síntese. Em sua liberdade o ser humano se angústia diante de sua possibilidade, e a angústia nos ajuda a perceber o processo rumo ao abismo da possibilidade. A análise psicológica pode percorrer todo o caminho até o momento imediatamente anterior ao salto. O salto em si ela não pode explicar; contudo, ela pode afirmar que a desestabilização da síntese ocorre efetivamente por um salto pelo qual cada pessoa individualmente é responsável. É sobre esta base que em A Doença para a Morte pode ser afirmada a responsabilidade individual com relação ao desespero
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Em um de seus rascunhos para A Doença para a Morte Kierkegaard escreve:
de onde, então, o desespero vem? Da relação na qual a síntese se relaciona a si mesma. Essa relação é espírito, o self, e sobre ela está a responsabilidade por todo desespero a cada momento de sua existência por mais que a pessoa em desespero fale de seu desespero como um infortúnio – assim como no anteriormente mencionado caso de vertigem, com o qual o desespero tem muito em comum de modo que se pode dizer que a vertigem, na categoria do físico corresponde ao que o desespero é na categoria do espírito. Mas a categoria da responsabilidade corresponde à categoria do espírito (SUD, p. 144)
Se n’O Conceito de Angústia há uma ênfase no conceito de responsabilidade no que diz respeito à desestabilização da síntese, esta questão retorna em A Doença para a Morte agora ganhando forma também no que diz respeito a realizar a síntese corretamente. Há que se perceber que a responsabilidade implicada no processo de desestabilização da síntese corresponderá à responsabilidade implicada justamente no processo de tornar-se um self procurando restabelecer a síntese que constitui o ser humano em sua devida relação.
Kierkegaard por vezes é mal compreendido por dar ênfase a questões como angústia e desespero. Entretanto, sua preocupação com essas questões diz respeito justamente a tornar-se um self, a uma questão afirmativa, por assim dizer. O princípio do processo que envolve a eliminação do desespero é a conscientização do desespero entendido não como algo que surge apenas a partir de pressão externa, mas a partir do próprio ser humano individual. Nesse processo, a consciência é fundamental: “um médico não deve apenas prescrever remédios, mas, antes de qualquer coisa, [først og fremmest] diagnosticar a doença”
Se na Dinamarca do século XIX na sua fusão/confusão entre cultura e religião a cristandade era o que eximia o indivíduo de responsabilidade com relação a tornar-se si mesmo e assumir responsavelmente a própria existência, Kierkegaard indiretamente procura “tornar o seu leitor atento” ao desafio existencial implicado precisamente no cristianismo - no modo como o entende. O processo de tornar-se um self, no entendimento de Kierkegaard, acontece na relação com Deus. Isso não significa negar a própria responsabilidade ou eximir-se dela. Já nas primeiras páginas de A Doença para a Morte Anti-Climacus afirma: “Heroísmo cristão, que, com certeza é visto muito raramente [sjelden nok], é arriscar completamente tornar-se si mesmo, um ser humano individual, esse ser humano individual específico [dette bestemte enkelte Menneske], completamente só diante de Deus [ene lige over for Gud], só nesse enorme esforço e nessa enorme responsabilidade; mas não é heroísmo cristão deixar-se enganar com o conceito abstrato de ser humano/o ser humano puro [det rene Menneske], ou jogar o jogo de admiração/adivinhação [Forundringsleg] com a história do mundo.”
Enfim, tudo aqui gira em torno de o indivíduo perceber a sua responsabilidade em tornar-se um self,
[...] pois um self é a coisa da qual menos se sente falta no mundo [mindst spørges om i Verden] e a coisa mais perigosa de todas de deixar notar que se tem. O maior perigo, o de perder a si mesmo, é algo que pode ocorrer tão silenciosamente no mundo como se não fosse nada. Nenhuma perda pode acontecer tão silenciosamente; qualquer outra perda, um braço, uma perna, 5 reais, uma esposa etc. é digna de ser notada [bemærkes dog]. [SUD, p. 32]
[1] É difícil definir ou exemplificar o que seriam elementos de liberdade vivenciados pelo self em termos gerais e abstratos, justamente porque, como Kierkegaard o entende, estes deveriam ser definidos em sua relação polar constituinte com a necessidade. Mais do que a determinação dos aspectos concretos da liberdade em diferentes contextos, entretanto, o que importa aqui é a pressuposição de liberdade no que diz respeito ao propriamente humano na constituição do self enquanto processo de tornar-se.
[2] SV3 15-SD, p. 81 Cf. KW XIX-SUD, p. 22.
[3] Eu posso conhecer o resultado da efetivação de minhas possibilidades, mas só até certo ponto. Eu sei que se eu matar alguém posso sentir remorso, culpa, arrependimento, sentimentos que conheço. Entretanto, o remorso e a culpa por matar uma pessoa eu não sei exatamente o que é, eu não conheço todas as sensações que estão envolvidas em tal ato assim como também não sei como eu mesmo seria depois de tal ato. Igualmente não conheço exatamente o que seria de mim em virtude das penalidades que me seriam impostas.
[4] SKS 4-BA, p. 348 (grifo no original) CA, p. 42.
[5] SKS 4-BA, p. 365 Cf. KW VIII-CA, p. 61.