MARCIO GIMENES DE PAULA: “Adão e a temática do pecado original segundo Kierkegaard”
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O contexto do Conceito de Angústia

           

            Tal como avalia Gordon Marino (MARINO, 1998), o Conceito de Angústia é um dos livros mais difíceis de Kierkegaard e certamente poderia – ou mereceria - ser reescrito em qualquer época. Sua introdução, por exemplo, é uma tentativa de descrever a vertigem e bem pode ser tomada por um simples divertimento com conceitos e temas profundos. Seu texto possui todos os elementos de uma farsa. Sua proposta ética, seguindo a senda socrática, é distingüir aquilo que sabemos daquilo que não sabemos.

            Durante muito tempo vigorou o silêncio de alguns especialistas sobre o Conceito de Angústia, a despeito dele haver influenciado toda uma geração de pensadores como Heidegger, Sartre, Tillich, Barth e tantos outros. Por sua própria natureza, a obra parece própria para a psicanálise e para a psicologia. O pseudônimo autor do livro, um tal Vigilius Haufniensis antecipa algumas das teses de Freud como angústia e mal, angústia e pecado, demonstrando ainda afinidade com Santo Agostinho e com temas teológicos[1]. Aliás, além de Marino, Valls já aponta para essa fecunda relação entre Freud e Kierkegaard[2] no que se refere à angústia:

Percebemos inicialmente que Kierkegaard pertence a uma geração anterior a de Charles Darwin, e não esperamos de Kierkegaard coisas que só Freud fez. Aceitamos a afirmação de que ele tem uma influência na psicologia profunda e na filosofia da existência, e procuremos mostrar que tais nuanças tem, que tipos de descobertas, e qual a sua intenção. Mostraremos que em alguns pontos os enfoques são muitos semelhantes e aqui e ali há coincidências ricas, mas que também há, digamos, intenções diferentes (VALLS, 2002: 75).

 

Entretanto, surge a pergunta: quem é Vigilius Haufniensis? Curiosamente, sabemos que ele publicou o Conceito de Angústia  em 17 de Junho de 1844 e Migalhas Filosóficas em 13 de Junho de 1844. Em outras palavras, apenas quatro dias separam as teses das duas obras e, nesse sentido, poderíamos nos questionar, até que ponto o pseudonímico Johannes Climacus, autor das Migalhas Filosóficas, não repercute no seu texto algumas das teses da obra de Vigilus Haufniensis e até que ponto também as teses de Haufniensis não repercutem no texto de Climacus, tal como já suspeita Clair: “Desse modo, ao publicar simultaneamente essas duas obras, esses são dois pontos chaves para a compreensão da existência, as duas pontas do caminho da vida, que Kierkegaard acentua ao mesmo tempo” (CLAIR, 1976: 170). Seus antecedentes são A Alternativa, A Repetição e Temor e Tremor, todas publicadas em 1843. Além disso, foram publicados de forma intercalada, nesse ínterim, vários Discursos.

Segundo Marino, a obra é, a despeito do uso de um pseudônimo, uma comunicação direta no meio de textos indiretos. Aliás, até mesmo o pseudônimo desaparece depois dela: “Diferentemente de Johannes Climacus e Anti-Climacus, Vigilius Haufniensis escreve apenas um livro e desaparece da cena literária (MARINO, 1998: 310). O texto se configura como uma verdadeira trama de conceitos e de humor. Um desses exemplos é quando seu autor aponta que a lógica não é capaz de abordar a existência e por isso não pode ser chamada de realidade como faz Hegel.

Ao optar pelo pecado como ponto de partida, Kierkegaard, na voz de um pseudônimo ao menos, deixa clara a sua afinidade com a herança agostiniana e demonstra o seu ponto de vista religioso, bem como demonstra sua clara oposição a Hegel ao abordar o conceito de queda e afirmar o Gênesis. Desse modo, o objetivo tanto do Conceito de Angústia como das Migalhas Filosóficas é abordar o homem como uma síntese de corpo e alma.

A indagação central da obra reside em torno da afirmação de que Adão é ignorante. Contudo, se ele é ignorante como pode distinguir o bem do mal? Com efeito, existe, no entender de Kierkegaard, claros limites da psicologia para entender o primeiro homem. Adão oscila entre a angústia, a inocência e a culpa. Desse modo, parece impossível, segundo avalia o pensador dinamarquês, explicar o fato do pecado, visto que nós apenas podemos nos aproximar da sua angústia.

Nesse sentido, a angústia é sempre uma possibilidade de liberdade, a liberdade como realidade, pois a liberdade plena é algo nunca possível. Não fortuitamente três temas estão presentes o tempo todo nas reflexões do pensador: a consciência de si, a liberdade, o pecado. A angústia aparece, portanto, como a possibilidade da possibilidade de liberdade e como forma paradoxal de fé. Notemos que, não despropositamente, o tema da consciência de si é aqui uma resposta kierkegaardiana ao posicionamento hegeliano, notadamente aquele exposto na Fenomenologia do Espírito. Por isso, Lacan, leitor de Kierkegaard e de Hegel, já observou com argúcia a relação que deve haver entre esses dois pensadores no que concerne à angústia: “A verdade da formulação hegeliana, quem a dá é Kierkegaard” (LACAN, 2005: 35)[3].

            Valls avalia que O Conceito de Angústia é um livro mais profundo do que aquilo que costumeiramente se imagina. Ele trata do pecado, mas o pecado não é assunto científico, nem psicológico, nem histórico ou ético, antes de constitui em objeto da teologia. Por isso, no seu entender, a obra de Haufniensis é um texto de filosofia transcendental: “O livro Conceito Angústia[4], não se assustem, é uma meditação transcendental, um texto de filosofia transcendental, sobre as condições de possibilidade para que o homem possa agir livremente. Como é que o homem age livremente? Numa liberdade que se enreda, que se enrosca e se atrapalha consigo mesma” (VALLS, 2002: 80). Esta parece ser a história de Adão, esta parece ser a história de cada um dos homens.

 

Adão no primeiro  capítulo  do Conceito de Angústia

Um dado que parece saltar aos olhos para todos os interessados na filosofia kierkegaardiana é o apreço do pensador por alguns personagens bíblicos. A história de Abraão e do sacrifício do seu filho Isaque é o principal motivo da sua obra Temor e Tremor, as desventuras de Jó se constituem num dos temas da Repetição. Além disso, são inúmeras as alusões a Paulo, a Cristo, aos profetas, aos evangelistas e aos demais apóstolos no decorrer de toda a sua obra. Contudo, chama especialmente nossa atenção aqui o cuidado dispensado por Kierkegaard a figura de Adão que, mesmo não sendo um personagem bíblico de comprovada existência histórica, representa aqui o homem como pecador ou capaz de pecar. Por isso, não despropositamente, poderíamos dizer que Adão é o tema por excelência do Conceito de  Angústia.

O primeiro capítulo do Conceito Angústia intitula-se a angústia como suposto do pecado original e como  meio de seu  esclarecimento, precisamente retrocedendo em direção a sua origem[5]. O título, por si mesmo, já parece apontar a angústia como algo que antecede o próprio pecado original. Por isso, a primeira subdivisão desse capítulo almeja avaliar as indicações históricas acerca do pecado original e, nesse ponto, o autor faz referência a diversos aspectos dogmáticos que abordam tal questão e assemelham o pecado de Adão ao pecado original. Seu intuito é operar a crítica de uma dada teologia que não considera seriamente o pecado de Adão, a despeito da impossibilidade de explicá-lo racionalmente, pelo menos dentro de uma dada corrente interpretativa de racionalidade, a história eclesiástica está repleta de exemplos, no entender de Haufniensis, que apontam para dados muitos claros que não podem ser menosprezados.

Sempre que se discute a temática do pecado original, inevitavelmente nos confrontamos com o choque do indivíduo com a  humanidade, isto é, Adão é um indivíduo concreto ou representa a humanidade? No seu significado hebraico, seu próprio nome evoca uma semelhança com a terra e com alguém que é proveniente dela. Nesse sentido, para Haufniensis, ele é o homem e humanidade simultaneamente:

Adão é o primeiro homem, e isto significa que ele é simultaneamente ele mesmo e o gênero humano. Não será a beleza estética que nos identifica com ele, nem um sentimento de bondade o que nos induz a aderir a Adão, obstando-nos de o considerar um bode expiatório; não será, igualmente, por um impulso de simpatia ou por piedade forçada o que nos obriga a agüentar o que, no fim das contas, nos está por fatalidade destinado. É através do raciocínio que damos nossa adesão a Adão. Desse modo, sempre que, conforme as fórmulas dogmáticas, tentamos explicar o que significa Adão para o gênero humano como caput generis humani naturale, seminale, foederale, diferente do gênero humano, que, se assim fosse, jamais existiria, nem se confunde com ele, o que traria como conseqüência, do mesmo modo, a inexistência do gênero humano. Adão é, na verdade, ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que dá a explicação de Adão dá igualmente a explicação do gênero humano, e reciprocamente (KIERKEGAARD, 1968: 33).

 

Se há, portanto, um pecado original, surge a dúvida se os demais pecados, posteriores a esse, seriam conseqüências do pecado de Adão. Por isso, cabe uma definição sobre o que se entende por pecado original. Em outras palavras, seu conceito deve superar a história ou o meramente cronológico. Caso contrário, no entender de Haufniensis, Adão ficaria desligado do gênero humano:

 Dando-se ao primeiro pecado o sentido numérico de um pecado, não haverá mais história e o pecado não possui história nem no indivíduo e nem na humanidade, visto que a condição para isso é a mesma, o que não significa que, enquanto história, a da humanidade coincida com a do indivíduo, nem aquela do indivíduo seja a da humanidade, a não ser no sentido de que a contradição exprima sempre o problema (KIERKEGAARD, 1968: 34).

 

O pecado original é pecado enquanto qualidade, não é quantitativo. O conceito da história do pecado se dissolve e perde a importância na medida em que o pecado de Adão é equivalente a todo pecado que ocorre posteriormente. Por isso, não importa aqui o conflito entre mito e razão. Antes cabe observar, como a pecaminosidade[6], isto é, a capacidade de pecar ou pecabilidade, penetrou em Adão e fez com ele pecasse:

Com o pecado original de Adão, o pecado entrou no mundo. Ainda que tal afirmação seja comum, traduz um juízo de certo modo superficial que muito ajudou para o nascimento de equívocos cheio de erros. Não há dúvida de que o pecado entrou no mundo, porém sob esta formulação o fato não é concernente especificamente a Adão. Para sermos estritos e corretos, antes deveremos afirmar que, com o pecado original de Adão, a pecabilidade entrou em Adão (KIERKEGAARD, 1968: 36).

 

Para Haufniensis, Adão comporta em si um curioso debate entre indivíduo e história, espécie e gênero. Se afirmarmos que ele é importante apenas para o gênero humano, há uma destruição do indivíduo, já se afirmarmos que ele é apenas um indivíduo, as coisas também parecem se confundir e fica a pergunta como é possível conciliar Adão com a história:

O pecado original, porém, considerado em Adão circunscreve-se a este primeiro pecado. Será, portanto, Adão o único sujeito sem história? Em tal caso, se faria principiar o gênero humano por um indivíduo que não o é, o que destrói os conceitos de gênero e de indivíduo. Se qualquer indivíduo do gênero humano pode, por sua história, importar à história do gênero, Adão igualmente importará; porém, se a importância de Adão advém tão somente daquele primeiro pecado, o conceito de história é que se despedaça – e a história teria acabado no instante em que principiou” (KIERKEGAARD, 1968: 37).

 

Há aqui um claro choque entre o gênero humano e indivíduo. Contudo, o mito da razão não consegue, no entender de Haufniensis, mostrar como Adão é responsável pelo pecado original do homem se ele sequer pertence, nessa perspectiva, ao gênero humano: “Colocar o princípio do gênero humano em um indivíduo que não tem participação nesse gênero é apenas um mito da razão, do mesmo modo que fazer principiar a pecabilidade abstraindo-se o pecado” (KIERKEGAARD, 1968: 37).

            Juntamente com o conceito de pecado original, temos agora a problemática do conceito de inocência. Segundo nosso autor, a lógica de Hegel destrói, a despeito de ter boa aceitação entre alguns teólogos ortodoxos, toda imediatidade da fé e, por isso, é problemática para a afirmação do cristianismo:

   Se, atualmente, desejarmos achar uma definição dogmática a propósito deste ou de outro ponto qualquer, o melhor procedimento é fazer  tábua rasa das descobertas de Hegel em favor da Dogmática. Sente-se um estranho incômodo quando se constata que alguns teólogos, muito embora preocupados em continuar ortodoxos, aceitam a determinação favorita de Hegel, segundo a qual o imeditato está fadado a ser abolido, como se existisse total identidade entre imediação e inocência (KIERKEGAARD, 1968: 38).

 

Ainda nesse mesmo sentido, a lógica hegeliana não tem importância alguma para a afirmação de aspectos do religioso relacionados com o imediato. Hegel, no entender do nosso autor, se equivoca ao colocar o imediato na esfera da lógica. Por isso, cabe afirmar a ética com a esfera para a discussão apropriada do conceito de inocência:

Está claro que Hegel, com a sua Lógica, pulverizou todo e qualquer conceito dogmático, exatamente o suficiente para lhe poder conferir a existência reduzida de simples expressão lógica. Não tínhamos a necessidade de Hegel para conhecer que o imediato precisa ser abolido nem enxergarmos o seu mérito imortal ao proclamar isso, mesmo porque, do ponto de vista lógico, a afirmação não é procedente: logicamente, não se deve anular o imediato, pelo singelo motivo de que este jamais existe. Se o conceito de imediatividade pertence ao domínio da Lógica, o de inocência recai sobre a jurisdição da Ética, e é preciso falar que qualquer que seja o conceito de acordo com a ciência a que respeita, quer seja que respeitar a ciência tenha o significado, para o conceito, de desenvolver-se verdadeiramente de acordo com essa ciência, seja que signifique que nos satisfazemos em o pressupor para o desenvolvermos (KIERKEGAARD, 1968: 38-39).

 

O fim da nossa inocência, tal com o fim da inocência de Adão, é marcado, portanto, não pelo pecado, mas pela consciência da culpa. A culpa humana se configura aqui como consciência do pecado: “Do mesmo modo que Adão, é através da culpa que cada um de nós perde a inocência. Não fosse assim, também não seria a inocência o que perderíamos, e, não sendo inocentes antes de culpados, como nos tornaríamos culpados?” (KIERKEGAARD, 1968: 39). Por isso, seria tola a pergunta que questiona o que teria ocorrido no mundo se Adão não tivesse pecado:

 O tempo que, inúmeras vezes, fizemos perder à Dogmática, à Ética e a nós mesmos, refletindo no que aconteceria se Adão não cometesse pecado, mostra somente que tínhamos arraigado em nós um sentimento falso. Ao inocente jamais ocorreria tal indagação, porém, o culpado, quando a faz, peca, porque pretende, em sua curiosidade estética, ignorar que ele mesmo introduziu a culpabilidade no mundo e perdeu, devido à culpa, a inocência (KIERKEGAARD, 1968: 40).

 

Ou como também observa Valls sobre a intenção de Haufniensis:

... o autor quer mostrar que o Adão é cada um de nós. Pois Adão não é o número zero, que não tinha pecado, depois pecou e todos nós pecamos em Adão. Não! O pecado sempre entra por cada um, cada um é um novo Adão. Adão é ele mesmo e todo o gênero humano. Cada um é também ele mesmo e todo o gênero humano. Se somos parte do gênero humano, apenas, não temos liberdade de indivíduos realmente responsáveis. Por outro lado, se cada um de nós fosse uma mônada totalmente separada do gênero humano, não existiria geração ou hereditariedade (VALLS, 2002: 81).

 

Por isso é que a inocência, enquanto estado, não pode ser captada pela lógica e ela será sempre o equivalente da ignorância:

A inocência é uma qualidade, é um estado que pode perfeitamente perdurar, e daí que para nada sirva a pressa da Lógica em a desejar abolir; efetivamente, faríamos bem se nos déssemos pressa ainda mais na Lógica, porquanto, aí, mesmo surgindo como um relâmpago, chega-se sempre muito tarde (KIERKEGAARD, 1968: 40-41).

 

Para melhor elucidar o conceito de inocência, cabe avaliar o conceito de queda que, segundo nosso autor, deve ter uma ordem inversa daquela que costumeiramente se pensa. Em outras palavras, é preciso primeiro pensar na culpa dos homens posteriores a Adão para, num segundo momento, pensar na culpa de Adão. Se for explicada a culpa de qualquer homem, ficará imediatamente clara a culpa de Adão: “... se eu conseguir explicar a culpa do homem que vem depois de Adão, poderei, do mesmo modo, explicar a culpa de Adão. Apenas por costume, e especialmente por irreflexão e estupidez ética, poderemos considerar aquela explicação mais singela do que esta última” (KIERKEGAARD, 1968: 42).

Com efeito, o pecado de Adão é igual ao pecado de qualquer homem e a história parece não ter aqui nenhuma importância e nem sequer serve de alguma coisa pensar as coisas de modo quantitativo. Aqueles que pensam de modo diferente ainda compreendem o pecado ao modo estético e, por isso, buscam a culpa em Adão. Tal posicionamento seria impossível para qualquer homem. Somente Cristo, na qualidade de divino, é que poderia ter adotado tal postura, mas ele foi mais do que um homem:

O único cuja inocência ficou aflita foi Cristo, porém este condoia-se com a pecabilidade não como estando diante de um destino a suportar, porém na posição de homem que, por livre vontade, escolhera chamar a si todos os pecados do mundo e sofrer as suas penas. Não existe aqui atitude estética, porque Cristo foi mais do que um indivíduo (KIERKEGAARD, 1968: 42).

 

Teria sido, então, o pecado fruto da proibição divina? Seria ele uma escolha ou uma vontade humana de se tornar semelhante a Deus? Tais indagações são tão intrigantes quanto antigas, mas ainda não parecem, no entender de Haufniensis, resolver a contento a questão. Sua pista é a afirmação da concupiscência enquanto desejo carnal com o qual todos os homens nascem e, por isso, tal como sugere mais enfaticamente a tradição protestante, estão sujeitos ao erro:

Se formos explicar a queda através da proibição de Deus, transformamos tal proibição em um estímulo para a concupiscentia. Aqui, a Psicologia foi além dos limites de sua alçada. A  concupiscentia é determinação do pecado e de culpa que antecede ao pecado e à culpa, porém que não coincide nem com a culpa nem com o pecado a não ser no sentido de ser instaurada por estes (KIERKEGAARD, 1968: 44).

 

Por tradição protestante, cabe notar aqui que a concepção kierkegaardiana refere-se, tal como observa Roos, a uma variedade de modelos dessa matrizl:

O Conceito de Angústia descreve os vários modos pelos quais a teologia pós-reforma explicava a participação do indivíduo no pecado original. Dentre as que mais se destacavam estava a de que Adão não era um ‘universal real’, a forma ideal da humanidade na qual todos os indivíduos estariam contidos. Outra teoria sustentava que todos os indivíduos estavam seminalmente presentes na genitália de Adão e, portanto, de alguma forma, tinham participação em seu ato. A Teologia ou Dogmática Federal, por sua vez, propunha que Adão, através de um acordo especial com Deus, era o representante legal de todas as pessoas. Uma visão mais moderada argumentava que Deus prescreve a culpa de Adão a todos os indivíduos na medida em que eles declaram sua solidariedade com Adão através de seu pecado pessoal (imputação mediada). Outra visão moderada sugeria que Deus previa que cada indivíduo, se colocado na situação de Adão, teria pecado do mesmo modo como Adão pecara (ROOS, 2007: 132).

 

Com efeito, é aqui que começa a ser desenhado aquilo que a interpretação kierkegaardiana denomina de conceito de angústia. Para o pseudonímico Haufniensis, inocência equivale a ignorar, tal como também julgavam os antigos gregos. Na plena inocência tudo o que se pode observar é a falta de um espírito capaz de julgar. Por isso, nosso autor critica contundente a interpretação católica. Tal concepção julga que Adão está fora da história a partir do momento em que peca. No modo de entender de Haufniensis não se pode ver, no homem inocente, alguém capaz de escolher, julgar e avaliar:

A inocência é a ignorância. Inocente, o homem ainda não está determinado como espírito, ainda que a alma conserva uma unidade imediata com o seu ser natural. Nele, ainda o espírito sonha. Tal interpretação está inteiramente de acordo com a Bíblia, que, não concedendo ao homem em estado de inocência a capacidade de discernir entre o bem e o mal, condena todas as meritórias fantasias católicas (KIERKEGAARD, 1968: 45).

 

Se o que existe é a inocência e nele não pode ainda haver nem escolha e nem qualquer capacidade de julgamento, o que se afirma, a partir disso, só pode ser o nada, isto é, inocência, antes de se tornar culpada, cede seu lugar para a  angústia que, por sua vez, só pode se afirmada enquanto angústia de nada:

 Em tal estado, existe calma e descanso; porém existe, ao mesmo tempo, outra coisa que, entretanto, não é perturbação nem luta porque não existe nada contra que lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz, porém, este nada? Este nada da nascimento à angústia. Aí está o mistério profundo da vida: é, ao mesmo tempo, angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade, que é um átimo, e a inocência vê sempre e sempre, diante de si, este nada (KIERKEGAARD, 1968: 45).

 

Com efeito, a angústia é uma determinação espiritual e ocupa lugar importante na psicologia. É ela quem estabelece a distinção entre o eu e outro eu de mim. Sua realidade surge como uma possibilidade e jamais pode ser comparado com temor, que se relaciona a algo exato e concreto. A angústia é algo que diferencia homens e animais, isto é, é uma determinação humana a capacidade de escolher e se angustiar diante do escolhido:

A angústia é a determinação do espírito sonhador, e, a tal respeito, ocupa lugar na Psicologia. A vigília estabelece diferença entre mim mesmo e o outro-em-mim, o sono deixa-a suspensa, o sonho traz a sugestão dela como um vago nada. A realidade espiritual aparece sempre como algo que tenta a sua possibilidade, porém que some assim que a desejamos captar. Não pode mais do que isso, enquanto apenas se mostrar. Poucas vezes encontra-se analisado, em Psicologia, o conceito de angústia e, desse modo, não posso deixar de assinalar bem a completa divergência entre este e outros conceitos idênticos, como o de temor, que sempre remontam a alguma coisa exata, enquanto que a angústia é a realidade da liberdade como puro possível. Por essa razão é que não a achamos no animal, cuja natureza não tem, precisamente, a determinação espiritual (KIERKEGAARD, 1968: 45).

 

Cabe notar, que a angústia não pode ser confundida com culpa: “A angústia formada na inocência se constitui, pois, em primeiro lugar uma culpa e, depois, um fardo que nos seja pesado, nem um sofrimento contraposto à beatitude da inocência” (KIERKEGAARD, 1968: 46). Curiosamente, a angústia é vista como algo que só pode ocorrer em espíritos. Por isso, com ironia, Haufniensis observa que mesmo que alguém possa afirmar que ela não existe nas crianças (em algumas delas) isso nada prova, pois ela também não se afirma no animal e “quanto menor o número de espíritos, menos angústia (KIERKEGAARD, 1968: 46). Nosso pseudonímico autor estabelece, a partir daqui, as bases para uma forte relação entre angústia e melancolia: “Neste nível, a angústia tem o mesmo nível que a melancolia num estado já muito ulterior, quando a liberdade, após ter passado pelas formas mais imperfeitas de sua história, tornou a conquistar-se no mais profundo de si mesma” (KIERKEGAARD, 1968: 46).

Se a angústia é, portanto, a forma imperfeita da liberdade, ela se configura como algo intermediário entre a inocência e a culpa. Por isso, a chave kierkegaardiana para a explicação da angústia reside na afirmação do espírito como um terceiro elemento entre a síntese alma e corpo: “O ser humano é uma síntese de alma e corpo; apenasmente (sic), esta se torna inimaginável se ambos os elementos não se reunirem em um terceiro. O terceiro é o espírito” (KIERKEGAARD, 1968: 47).

No estado de inocência o homem não é apenas o bruto, mas alguém que possui um espírito que sempre o deixa inquieto: “O espírito não pode estar contente com ele mesmo, nem apreender-se, enquanto o seu eu se conservar exterior a si mesmo; menos ainda o homem pode naufragar na existência vegetativa; visto que se determina como espírito, o fugir a angústia não é possível porque a ama...” (KIERKEGAARD, 1968: 47). Nesse momento, no entender do nosso autor, a angústia chega ao seu ápice e mostra toda a sua ligação com uma espécie de nada, visto que ainda não se pode aqui falar em consciência:

Em tal instância, a inocência chega ao ponto máximo. É ignorância, porém não animalidade bruta; trata-se de uma ignorância determinada pelo espírito e, entretanto, não deixa de ser angústia, desde que essa ignorância se abre sobre o nada. Não existe aqui conhecimento do bem e do mal, etc., a realidade completa do saber projeta-se na angústia como o infindo nada de ignorância (KIERKEGAARD, 1968: 47).

 

Logo, o pecado de Adão se afirma aqui como a vontade e como desejo reprimido. Trata-se da vitória do nada da angústia, algo que  precede a consciência. Aqui não se pode afirmar a consciência de Adão. Quando Deus o proíbe de comer os frutos da Árvore do Bem e do Mal, ele sequer poderia distinguir o que era bom e mau. A rigor tal distinção só faz sentido depois dele ter efetivamente saboreado os frutos. Do mesmo modo, ele também não é ainda capaz de entender a sentença divina que o ameaça de morte se desrespeitar a lei. Para Haufniensis, o pavor de Adão só pode derivar da angústia:

 Seguindo os termos da proibição, vão os do julgamento ‘por certo morrerás’. O que significa morrer. Adão certamente não o entenderia, ainda que nada obste, admitindo que tais palavras lhe fossem dirigidas, que tivesse formado certa idéia a respeito do horror que elas envolvem. A tal propósito, mesmo o animal pode entender a expressão mímica e o movimento de uma voz que lhe fale, sem compreender as palavras. Ora, se da proibição fez-se surgir o desejo, será necessário que a expressão do castigo faça surgir uma idéia de terror. Eis, contudo, onde está o erro. O pavor pode derivar apenas da angústia, visto como aquilo que foi dito Adão não o entendeu e a situação coloca-nos outra vez diante da ambigüidade da angústia. A possibilidade incomensurável de poder, originada pela proibição, cresceu pelo fato de esta possibilidade recordar uma outra como sua conseqüência (KIERKEGAARD, 1968: 48).

 

Curiosamente, este é o limite da psicologia: abordar a angústia até o seu ponto extremo e relacioná-la com a coisa proibida e com o castigo. Por isso, Haufniensis aqui encerra a sua primeira definição sobre a angústia, que precede a culpa (e o pecado original), deixando uma clara insinuação de que, talvez, deve haver algum outro meio para se aprofundar mais tais conceitos do que a psicologia. Desse modo, a angústia do pecado deve ser vista como conseqüência do pecado no indivíduo. Por isso, ao menos aos olhos de nosso pseudonímico autor, o problema não está em saber se o Gênesis possui ou não uma forma mítica, pois isso não muda em nada a explicação da questão “visto que o mito exterioriza sempre uma ação interior” (KIERKEGAARD, 1968: 50).

Aqui se configuram problemas muito pontuais: a serpente como sedutora, as figuras de Adão e Eva. A rigor, Eva também é inocente, pois provém de Adão e ambos parecem não conseguir compreender nada do que procede da serpente, mas aqui começa a se firmar a angústia que é presente tanto nos homens como nas mulheres. Em outras palavras, surge o problema da linguagem, isto é, como poderia Adão entender ou transmitir algo. Por isso, com algumas boas razões, Haufniensis parece desconfiar de tudo o que até então se afirmou da serpente sedutora numa dada tradição cristã:

Ainda temos a serpente. Não aprecio nem um pouco acrobacias espirituosas e, querendo Deus, hei de resistir às tentações de quem, como fez no princípio dos tempos, com Adão e Eva,  jamais deixou de tentar, desde aquela época, os autores a cometerem essas acrobacias. Prefiro confessar, muito simplesmente, que não posso formar uma idéia exata a tal respeito. Aliás, a dificuldade com a serpente é de outra ordem: efetivamente, a tentação, na narrativa bíblica, vem do exterior, o que contraria a doutrina da Bíblia expressa na passagem clássica de São Tiago, de acordo com a qual nem tenta nem é tentado por ninguém, e, ao contrário disso, cada pessoa é tentada por si mesma... todo homem é tentado por si próprio (KIERKEGAARD, 1968: 51).

 

Se a tentação é dada pela própria angústia de cada ser humano, a queda se constitui numa parte que a psicologia não é capaz de explicar, mas revela um salto qualitativo. Com efeito, a história antecede a possibilidade da liberdade, mas tal possibilidade não é uma capacidade de poder escolher entre o bem e o mal. Na lógica pode-se dispensar o intermediário, mas aqui tal coisa não é possível. Por isso, a angústia não pode ser explicada nem pela necessidade e nem pelo livre-arbítrio:

A angústia, se não é uma categoria da necessidade, igualmente não o é da liberdade; corresponde a uma liberdade obstaculada, em que a liberdade não é livre em si mesma porém cujo obstáculo se insere nela mesma e não na necessidade. Tivesse o pecado penetrado no mundo através da necessidade (o que constituiria uma contradição) não existiria angústia alguma. Se tivesse penetrado graças a um abstrato liberum arbitrium (que nem existiu depois nem no princípio, visto que não é mais do que uma inanidade) igualmente não haverá angústia. Pretender explicar de maneira lógica a entrada do pecado no mundo é uma estupidez que apenas pode ocorrer a pessoas ridiculamente apressadas em encontrar explicações a qualquer preço (KIERKEGAARD, 1968: 53).

 

Não há, portanto, ninguém que consiga explicar cabalmente o pecado, embora muito possam questionar sua entrada no mundo de forma absolutamente grosseira, mas Haufniensis nos aconselha, com ironia, a não debater com tais espíritos: “Sempre que um pateta vos endereçar perguntas, atentai bem para não lhe retrucar; de outra maneira, sereis ao menos tão imbecil quanto ele” (KIERKEGAARD, 1968: 53). Somente a psicologia pode, talvez, fornecer alguma pista: “A única ciência com a capacidade para contribuir um pouco para a explicação é a Psicologia, ainda que ela mesma confesse que nada explica, que não pode nem deseja dar mais explicações. Se existisse uma ciência capacitada a explicar a entrada do pecado no mundo, a confusão seria generalizada” (KIERKEGAARD, 1968: 54).

Logo, o homem é uma síntese de alma, corpo e espírito. Adão é seu representante por excelência. No estado de inocência, ele é tal como um espírito que vaga e sonha, isto é, ele é alguém que não consegue realizar a síntese. Ao realizar a síntese ele supera a inocência e a sua própria animalidade, mas ele só é capaz de se afirmar homem na medida em que segue sendo um animal.

 

 

Referências bibliográficas

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MALANTSCHUK, Gregor.1986. Index Terminologique – principaux concepts de Kierkegaard – Søren Kierkegaard – Œuvres Completes – Tome XX. Paris, L´Orante.

MARINO, Gordon. 1998. Anxiety in The Concept of Anxiety. In: The Cambridge Companion to Kierkegaard. HANNAY, A. e MARINO, G. (ed). Cambridge, Cambridege University Press, p. 308-328.

ROOS, Jonas. 2007. Angústia e pecado original em O Conceito de Angústia: uma interpretação. In: Søren Kierkegaard no Brasil – festschrit em homenagem a Álvaro Valls. REDYSON, Deyve; ALMEIDA, Jorge Miranda de e PAULA, Marcio Gimenes de (ed). João Pessoa, Idéia, p. 127-154.

VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. 2002. A dimensão transcendental do Conceito Angústia (S. Freud e S. Kierkegaard). In: Kierkegaard cá entre nós. VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Porto Alegre, texto digitado, p. 74-85.  



[1] A relação entre Kierkegaard e Santo Agostinho é complexa e profunda. Para uma análise da questão do pecado original em ambos os pensadores, vale examinar:

THULTRUP, N. 1980. Adam and original Sin. In: THULTRUP, Niels and Marie Mikulová (ed). Theological concept in Kierkegaard. Copenhagen, C.A. Reitzels Boghandel, p. 122-156.

[2] A relação entre Kierkegaard e Freud é complexa e profunda. Para uma análise da angústia em ambos os pensadores, vale examinar:

VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. 2002. A dimensão transcendental do Conceito Angústia (S. Freud e S. Kierkegaard). In: Kierkegaard cá entre nós. VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Porto Alegre, texto digitado, p. 74-85.

[3] A relação entre Kierkegaard e Hegel é complexa e profunda. Para uma análise da questão do pecado original em ambos os pensadores, vale examinar:

WESTPHAL, Merold. 1998. Kierkegaard and Hegel. In: The Cambridge Companion to Kierkegaard. HANNAY, A. e MARINO, G. (ed). Cambridge, Cambridege University Press, p. 101-124.

[4] Valls opta pela tradução Conceito Angústia e não Conceito de Angústia, como procedem os demais tradutores aqui mencionados.

[5] Apesar de utilizarmos em nossa análise a edição brasileira de Torrieri Guimarães (1968), que é, por sua vez, baseada na tradução francesa de Ferlov e Gateau (1935), optamos aqui pela tradução espanhola de Demetrio Rivero (2007), nesse ponto específico e também como fonte de comparação com a tradução utilizada. Tal tradução, baseada no original dinamarquês, parece fornecer melhor o significado proposto pelo autor, tal como também ocorre com a tradução francesa de Tisseau (1973).

[6] Seguindo a tradução apontada por Álvaro Valls opto, a despeito de a tradução brasileira utilizar o termo  pecabilidade pelo termo pecaminosidade. Desse modo, todas as vezes que a tradução utilizada apontar pecabilidade, leia-se pecaminosidade.

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