PAULO HENRIQUE LOPES: "A desconstrução da autoridade do autor promovida pela pseudonímia da obra kierkegaardiana"
Universidade Federal de Juiz de Fora – Brasil

peaga_bio@yahoo.com.br
 
Como despertar alguém que sonha estar já desperto? Tenhamos em vista este dilema que a obra kierkegaardiana coloca como um problema para se pensar o limite epistemológico da filosofia e da religiosidade frente ao conteúdo existencial com o qual ambas se propõem a lidar. Como despertar alguém que sonha estar já desperto, ou, nos termos do Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor (1998), como dissipar a ilusão na qual um indivíduo está imerso dizendo-se cristão, quando na verdade, está ancorado em categorias estéticas ou éticas? Ainda, como tornar o indivíduo atento à própria existência?
O como, expressão que abre todos os desdobramentos daquele dilema, nos introduz à importância que aforma terá para a obra kierkegaardiana como um todo e à sua articulação dialética com oconteúdo existencial-religioso que a perpassa. No Ponto de Vista, Kierkegaard deixará claro a sua preocupação em não cair na armadilha de recorrer à mesma forma que critica, a saber, a comunicação direta, objetiva, sistemática.

Se todos estão na ilusão, dizendo-se cristãos, e se é necessário trabalhar contra isso, esta noção deve ser dirigida indiretamente, e não por um homem que proclama bem alto que é um cristão extraordinário, mas por um homem que, mais bem informado, declara que não é cristão. Por outras palavras, é preciso apanhar pelas costas o que está na ilusão. (KIERKEGAARD, 1998, p.43).

Aqui se desponta, portanto, um dos atributos da comunicação indireta kierkegaardiana: a sua dinâmica se dá pela arte do engano, a fim de gerar no leitor uma dupla reflexão subjetiva. Seu objetivo taciturno é enganar o já engando à serviço da Verdade – o que, por sua vez, se inspira muito da ironia e da maiêutica negativa que Kierkegaard identifica em Sócrates,já desde sua primeira publicação, O Conceito de Ironia.
O engano, ou a ilusão, a que Kierkegaard se refere, coincide com o alvo de sua mais dura crítica à religiosidade de seu tempo: uma cristandade doutrinadora que, ao contrário de convocar o indivíduo à responsabilidade de sua própria existência, isto é, ao exercício de sua autenticidade, fornece-lhe respostas objetivas que, inclusive, privam-no do exercício de sua subjetividade. Esta cristandade facilita e resolve a vida do suposto cristão, servindo-lhe de mediação para com o conteúdo religioso-existencial propriamente dito, ou seja, arruína-o ao se dispor no âmbito puramente estético-ético[1]
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Portanto, o autor religioso (Kierkegaard se reconhece enquanto um), “cujo pensamento total é o tornar-se cristão, faz bem em estrear-se na cristandade como autor estético” [47] a fim de que possa penetrar no sono daquele que sonha estar desperto. É aí que a arte do engano da obra kierkegaardiana começa a operar em dialética com o conteúdo existencial-religioso, não enquanto teoria, mas enquanto performance: Kierkegaard lança mão de autores que não existem, pseudônimos, para compor o que ele chamará de parte estética da obra. A pseudonímia kierkegaardiana é uma isca estética que cobre o anzol religioso em sua tarefa de içar o leitor da ilusão em que se encontra mergulhado na cristandade ou na filosofia sistemática.

Com os pseudônimos, os conceitos da obra kierkegaardiana são dotados de subjetividade. Os conceitos respondem em primeira pessoa: há um esteta para falar pela dimensão estética e um juiz para falar pela ética (na obra Ou-Ou, por exemplo); há o poeta e um cético para falar por estes âmbitos; o jovem e ConstantinConstantius, em A Repetição. O desespero tem voz; o sedutor, também. Há Johannes Climacus, Anti-Climacus, Victor Eremita, VirgiliusHaufniensis, Johannes de Silentio, e muitos outros, dentre os quais figurará, por sua vez, o nome de Kierkegaard.

Se comecei por indicar a intenção de Kierkegaard enquanto autoridade religiosa que se desponta sobre a arquitetura estética da obra, de uma maneira que ainda se poderiasupor que ele, enquanto ortônimo, teria todo o controle da dinâmica entre o estético e o religioso, é para lembrar que, dentre os pseudônimos, oPonto de Vista pode ser apenas um dos pontos de vista sobre a obra kierkegaardiana. Joaquin Garff ressaltará queoutros textos kierkegaardianos farão declarações normativas sobre a própria dinâmica da obra –textos estes que ele chamará de meta-textos. Um deles é umAdendo tambémescrito por Kierkegaard, inserido noPós-Escrito às Migalhas Filosóficas assinado por Climacus (2016). Ali, Kierkegaard provê Uma primeira e última explicação sobre a questão da pseudonímia. Escreve ele:
Minha pseudonímia ou polinímia não teve uma razão casual em minha pessoa [...], mas uma razão essencial na própria produção [...]. O que está escrito, então, é meu, mas apenas na medida em que eu coloquei na boca da individualidade poeticamente real que produz sua visão de vida [...]. Eu sou, com efeito, impessoalmente ou pessoalmente na terceira pessoa, um soffleur que produziu poeticamente autores, cujos prefácios, por sua vez, são produções deles, sim, como o são até seus nomes. Não há, portanto, nos livros pseudonímicos uma única palavra que seja minha. (KIERKEGAARD, 2016, p.341)
 
Cito esta grande passagem porque ela diz muita coisa sobre o nosso problema. Em um primeiro momento, ela diz algo que parece ser óbvio, mas que, talvez por isso, tem sido constantemente deixado de lado: a pseudonímia da obra kierkegaardiana não se constitui como mero afresco estilístico – ela é uma componente essencial da obra, um problema filosófico colocado pela relação dialética que o conteúdo existencial-religioso, portanto subjetivo, impõe à sua forma de comunicação. Em suma, Kierkegaard não cria pseudônimos porque ele quer, mas porque ele não pode escrever de outra forma – a obra exige uma multivocalidade em face, inclusive, àquela empreitada crítica a que se dispõe a comunicação indireta fazer. Os conceitos querem falar por si próprios, sendo Kierkegaard apenas uma ocasião de sua manifestação dentre o conjunto da composição[2]
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Sendo a pseudonímia um problema filosófico essencial na obra, Kierkegaard aplica este recurso ao extremo, isto é, declara a independência dos pseudônimos da sua figura enquanto ortônimo, elevando-os à qualidade de autores propriamente ditos. Ora, isso implica em uma consequência grave para o nome de Kierkegaard dentre a obra, que começa a se descontruir enquanto autoridade autoral.

Enquanto autor de autores, há pelo menos duas possíveis dialéticas entre forma e conteúdo, dentre as quais se vê imerso o nome de Kierkegaard.

A primeira dialética, a que é comumente considerada pelos intérpretes, inclusive de maneira instintiva, é uma dialética-fraca que, como indicado no começo deste trabalho, estaciona na dicotomia entre pseudônimos e ortônimo, considerando aqueles como sendo uma dimensão estética de uma intenção religiosa que recai totalmente sobre a autoridade autoral de Kierkegaard. Mais do que isso, os pseudônimos são meros ventríloquos do ortônimo que permanece resoluto e soberano por detrás e acima deles. Levada ao extremo, esta dialética estrutural desemboca na perspectiva de Walter Lowrie (1957) queafirma, no prefácio de sua tradução de O Conceito de Angústia, que todas as palavras deste livro escrito por VirgiliusHaufniensisdeveriam, sem maiores prejuízos, ser atribuídas à Kierkegaard. Ou, em outros casos menos radicais, o problema da pseudonímia é simplesmente ignorado, mesmo em estudos que lidam com o estilo da obra kierkegaardiana, como percebemos no artigo de Stephen Evans (2004), The role ofirony in Kierkegaard’sPhilosophicalFragments. A ironia de Climacus, enquanto autor, é totalmente sonegada neste título que já indica a chave-de-leitura que fundamenta o respectivo estudo. O problema desta dialética-fraca é que ela pode induzir o intérprete à procura e à defesa de uma interpretação certeira, com base na descoberta objetiva da intenção de Kierkegaard enquanto autoridade autoral sobre toda a obra, assassinando, assim, toda a carga subjetiva que a pseudonímia retém enquanto recurso formal de uma filosofia da religião existencialista.

A segunda dialética, uma dialética-forte, é aquela que, considerando a pseudonímia como um requerimento formal, não estaciona na dicotomia entre pseudônimos e ortônimo, mas considera a relação da obra kierkegaardiana como um todo e a sua abertura subjetiva ao conteúdo existencial-religioso de que se ocupa. Segundo esta dialética-forte, não podemos chegar à intenção de Kierkegaard, não só porqueele, enquanto autor, está no mesmo nível que os demais autores da obra kierkegaardiana, mas também porque, ainda que isso fosse possível, a sua intenção não nos diria nada, uma vez que responde ao que ele chama de Providência: por suas palavras – “a Providência fez a minha educação, que se reflete no processo de minha produção” (KIERKEGAAD, 1998, p.79).

Esta dialética-forte invalida e engole a primeira, no sentido em que assimila a desconstrução da autoridade autoral de Kierkegaard que a comunicação indireta prevê enquanto forma. Se aquela primeira dialética-fraca considera a intensão de Kierkegaard enquanto sendo aquilo que presta conteúdo para a sua conformação, a segunda, considera o critério absoluto religioso como sendo este conteúdo que, de certo modo, faz de Kierkegaard, o mesmo que autoridade de Kierkegaard faria com os pseudônimos no primeiro caso, isto é, esta dialética-forte, que responde à conformação religiosa da Providência, o rebaixa ao status de ser mera ocasião para a comunicação indireta deste conteúdo.

Isto gerará uma crise em Kierkegaard que, nos diários, pensando em retrospecto justamente sobre a questão da pseudonímia, sobre a questão da capacidade de expressar a sua autenticidade em primeira pessoa dentre a obra e, ainda, sobre como ele se enquadra dentre esta dialética-forte, chega a apresentar o que para nós, aqui, seria ainda um terceiro ponto de vista meta-textual:
A dificuldade em publicar qualquer coisa sobre a obra reside no fato de que, sem meu conhecimento sobre ela, ou sem conhecê-la positivamente, eu realmente fui usado, e, pela primeira vez, eu entendo e compreendo o seu conjunto – mas, deste modo, eu não posso, sobretudo, dizer: Eu. No máximo posso dizer (dada a minha escrupulosa demanda pela verdade): agora é assim que eu entendo a produção do passado. De novo, o problema consiste em que, se eu não o fizer por mim mesmo, não haverá ninguém que poderá fazê-lo, pois ninguém a conhece do modo em que eu a conheço. Ninguém pode explicar a estrutura do conjunto como eu. Mas esta é a minha limitação – eu sou um pseudônimo. (KIERKEGAARD, 1967-78, X.2 A 89; 6232)
 
Estamos aqui, portanto, no cerne de uma desconstrução da autoridade de Kierkegaard pela obra. E o que processa esta desconstrução é a própria forma da linguagem e a sua incapacidade de abordar um conteúdo religioso-existencial subjetivo. Isto é, não só Kierkegaard não pode dizer Eu porque, como relembra Blanchot, Kierkegaard reconhece que “sobre aquilo que constitui de uma maneira total e essencial, na maneira mais íntima, minha existência, eu não posso falar” (BLANCHOT, 2001), quem dirá poder comunicar objetivamente este conteúdo a um interlocutor. Este interdito ecoará por toda a obra – Johannes de Silentio (1983) não pode falar sobre a situação solitária e absurda de Abraão enquanto cavaleiro da fé; Johannes Climacus (2016) assinala que a racionalidade e o pensamento não alcançam o paradoxo existencial-religioso, que demanda um salto de fé; Haufniensis (2010), que a queda no pecado é de responsabilidade do indivíduo, bem como, para Anti-Climacus (1980), o é a cura pela fé para esta doença para a morte que é o desespero.

De certa maneira, a comunicação indireta, que caracteriza esta forma de apontar para o que não pode ser dito objetivamente, antecipa A Morte do Autor, de Roland Barthes, no sentido de que a obra kierkegaardiana performa a desconstrução de uma autoridade autoral central de Kierkegaard dentre os pseudônimos, em meio àquela dialética-forte; uma vez que a fraca seria justamente afirmar a autoridade do autor.

Ao encontro do que diz Barthes, que “dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escritura” (BARTHES, 2004, p.70),a obra kierkegaardiana deforma esta segurança ilusória provida pelos sistemas filosóficos e pela cristandade, de modo que se nestessistemas e doutrinas objetivos “a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu” (BARTHES, 2004, p.67). A pseudonímia performa a abertura irônica do texto e o entrega ao exercício da subjetividade do leitor.

Isto é, indiretamente o leitor se entrega à segurança de um autor, mas quando recorre a este autor enquanto autoridade, percebe, enfim, que autor não há – o que há é o peso de um conteúdo existencial-religioso que cabe ao indivíduo se relacionar por sua própria responsabilidade. Atingido o propósito subjetivo da comunicação indireta, não há mais Climacus, Anti-Climacus, Kierkegaard, não há maisHaufniensis ou quaisquer de seus autores; aliás, não haverá sequer obra a que se recorrer – o que haverá é apenas o indivíduo frente ao peso de sua própria existência, desenganado pela arte socrática do engano, desperto indiretamente em face de um critério Absoluto e paradoxal que não admite nenhuma autoridade a não ser ele mesmo.
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
ANTI-CLIMACUS. The Sickness Unto Death. Traduzidopor: Howard V. Hong e Edna H. Hong Princeton: Princeton University Press, 1980.
BARTHES, R. A morte do autor. In: ______. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BLANCHOT, M. Fauxpas. Stanford: Stanford University Press. 2001.
CLIMACUS, J. Pós-escrito àsMigalhas Filosóficas. Volume 2. Traduzido por Álvaro L.M. Valls e Marília M. de Almeida. Petrópolis: Editora Vozes. 2016.
DE SILENTIO, J. FearandTrembling. Traduzido por: Howard V. Hong e Edna H. Hong Princeton: Princeton University Press, 1983.
EVANS, S. The role of irony in Kierkegaard’s Philosophical Fragments. In: SCHULZ, H. et al. (eds.) Kierkegaard Studies Yearbook. V. 2004, p:63–79. 2004.
GARFF, J. The eyes of Argus: The Point of View and points of view with respect toKierkegaard’s activity as an author. Kierkegaardiana. n.15: 29-54. 1991.
HAUFNIENSIS, V. O Conceito de Angústia. 3ª Ed. Traduzido por Álvaro L. M. Valls.Petrópolis: Vozes de Bolso. 2010.
KIERKEGAARD, S. The Point of View: On my Work as an Author – The Point of View for my Work as an Author – Armed Neutrality. Ed. e trad. com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1998.
______. Søren Kierkegaard’s Journals and Papers. Ed. e trad. de Howard V. Hong eEdna H. Hong com auxílio de GregorMalantschuk. v. 1-6, v. 7 Index. Bloomington,London: Indiana University Press, 1967-78. (versãoeletrônica).
POOLE, R. Kierkegaard: the indirect communication. Virginia: University of VirginiaPress. 1993.
 
[1] “Se, pois, por hipótese, a maioria dos cristãos só o é em imaginação, em que categoria vivem eles? Nas da estética ou, quando muito, nas categorias estético-éticas” (KIERKEGAARD, 1998, p.43).
[2] Esta perspectiva ganha força entre os comentadores principalmente com o lançamento do livro de Roger Poole, Kierkegaard: The Indirect Communication, em 1993.

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