ELISABETE MARQUES JESUS DE SOUSA: “Arte e experimentação, ou como superar a crise de representação”
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  1. Introdução:
Começo por explicar como nasceu o meu interesse pelo tema de hoje. O primeiro texto de Kierkegaard que eu li será porventura um dos menos lidos. Talvez porque a maioria dos seus leitores o considere de menor importância para uma leitura teológica, ou hegeliana à luz de Hegel ou dos hegelianos dinamarqueses, ou socrática. Ora, trata-se de um falso consenso, ameu ver, causado pelo desconhecimento.O capítulo “Os Estados erótico-musicais ou o Erótico-musical” é um dos maiores de todas as obras escritas por qualquer dos pseudónimos de Kierkegaard, e pertence à Primeira Parte de Ou-Ou, surgindo logo depois desse vademecum que dá pelo nome de “Diapsalmata”.E a sua importância é proporcional à sua dimensão.
Adiscussão mais brilhante contida no capítulo do erótico-musical tem a ver precisamente com a superação da crise de representação feita através de diversos tipos de crítica musical e teatral em que se elabora progressivamente e de forma experimentante uma teoria de superação da crise de representação. Ora esta crise constitui o cerne da crítica de Kierkegaard à idade contemporânea, e, no capítulo do erótico-musical, a superação é obtida através da defesa da simultaneidade de apresentação e representação. Neste capítulo, esta proposta só na aparência fica circunscrita a uma apreciação estética da obra de arte. Sublinhe-se também que é nela que se fundamenta o conceito de virtuosismo e a classificação de virtuoso a diversos agentes e em variados domínios de actuação nos campos da teologia e da filosofia, como no da política e no da ciência, como adiante veremos. Além de que é através dessa proposta que podemos entender a recorrência a personagens bíblicas e literárias que constituem o que podemos chamar de mitologia kierkegaardiana.
Como é sabido, esta teoria contida no capítulo do erótico-musical é avançada através de um caso particular, a ópera Don Giovanni de Mozart e Da Ponte, e a defesa da simultaneidade de apresentação e representação é exemplificada com a sensualidade, na sua condição pristina, na sua genialidade
[1]. A personagem principal – Don Giovanni, e a própria ópera no seu todo apresentam e representam a condição elemental da sensualidade. Relembro que esta ópera tem um título exibido como equivalente: Don Giovanni ossiaIl dissoluto punito. Este subtítulo, por si só, evoca um conjunto de temas fortes em Kierkegaard: a presença ou a ausência do pecado, do arrependimento, da auto-consciência de si. Todavia,estes temas não são plenamente desenvolvidosno capítulo do erótico-musical, masantes subtilmente introduzidos. Esta estratégia de não desenvolver estes temasprende-se com a construção de um tipo de sedutor – o sedutor sensual,que domina a linguagem dramático-musical definida pela imediaticidade, por oposição a Johannes, do Diário, o sedutor psíquico, que domina a linguagem verbal, a palavra, determinada pela reflexão[2]. Porém, como estamos recordados, Il dissoluto punito convoca temas que servem de pano de fundo à argumentação do Juiz, na Segunda Parte, pois pode muito dizer-se que o mote do autor das Cartas da Segunda Parte é a ideia de dissolução e de punição, de presença ou ausência do pecado, do arrependimento e da auto-consciência de si; e, por conseguinte, a explanação do título da ópera mozartiana acaba mesmo por se consumar em ambas as partes de Ou-Ou.
Outro dos factores que aguçou o meu interesse por esta questão é o facto de esta simultaneidade de apresentação e de representaçãoparecer que explode na pluralidade de autores e de editores. Daí ter partido em busca dos porquês da opção por uma apresentação e representação de ideias, teorias, análises existenciais, etc., feita de um modo tão heterógeneo, ainda para mais na obra que, reconhecido pelo próprio Kierkegaard, inaugura a sua carreira de autor religioso, mas que nunca é assumida como uma crise de representação por Kierkegaard.De facto, a pluralidade dos autores apresenta e representa a heterogeneidade do seu pensamento, e está longe de revelar instabilidade, ou alguma tentativa de disfarce,por parte de Kierkegaard. Pelo contrário,desenha os contornos de uma matriz de pensamento que, para ser autênticae actuante nos diferentes domínios visados na produção filosófico-literária de Kierkegaard, não pode resvalar para a equivocidade – Tvetydighed– e ainda menos para o ventriloquismo, os dois grandes pecados do Bispo Mynster. Eis uma das razões pela qual quase há um perfil, um nome, uma forma ou género literário para cada obra.E, de forma magistral, Ou-Ou, como obra de entrada, prepara o leitor para o que virá depois através de arte e de experimentação ao nível da instância autoral, do sujeito que escreve: somos confrontados com cinco autores (Eremita, A, B, Johannes o Sedutor e o pastor de “Ultimato”) e três editores (Eremita, A e B), cada um cultivando uma forma literária, com um diferente perfil de narrador, cada um deles, afinal, também um caso de fidelidade à sua escolha enquanto escritor-autor.
Por tudo isto, a minha atenção e a minha metodologia não se explicam por eu limitar o meu campo de investigação ao que é comum designar por «questões literárias» da obra de Kierkegaard. De facto, penso que,sem entender que a simultaneidadede apresentação e de representação constitui a camada fértil do terreno sobre o qual se erguem as categorias kierkegaardianas que dão expressão ao seu pensamento, dificilmente conseguimos alcançar uma perspectiva abrangente da sua obra. Este terreno fértil, efectivamente, é mais do domínio do estético do que do poético-literário. Mas não do estético, tantas vezes considerado de forma lamentavelmente parcial – e até indevida, de acordo com o próprio filósofo – enquanto estádio de existência pernicioso em que florescem vícios, mas de um estádio estéticocaracterizado, por um lado,por uma apropriação do debate pré-socrático em torno da aisthesis, i.e., da percepção e da sensação, situável numa fase de separação entre episteme e doxa e da dominação do logos. Aliás, diga-se, isto não pode de modo algum causar espanto: Kierkegaard é um pensador da existência humana, e sem o sentir e o percepcionar não há existência humana. Por outro lado, este estádio leva a uma consideração do estético em Kierkegaard que resulta também de uma apropriação do estético schilleriano enquanto estádio que permite um desenvolvimento exponencial de todas as qualidades e capacidades do homem.
Por conseguinte,a reflexão sobre o estético em Kierkegaard não pode limitar-se à análise do que é o poético-literáriona escrita de Kierkegaard porque, no sentido que acabo de expor, é um pilar estruturante de toda a obra de Kierkegaard: do próprio labor poético-literário, i.e, da poiesisque atravessa todo o pensamento, e dos conceitos e categorias a que dá forma.
Alguns exemplos de antinomias bastante conhecidas dos leitores de Kierkegaard permitem verificarcomo a simultaneidade de apresentação e de representação é uma trave-mestrada expressão do pensamento kierkegaardiano. Vejamos, então: ser cristão e ser-se cristão, isto é, dizer que se acredita em Cristo, ir à Igreja, etc., e, por outro lado, viver como cristão, como aquele que se apresenta como representante de Cristo; e no plano hierárquico, a diferença entre ser bispo, enquanto pastor de uma dada comunidade alargada, e ser bispo de uma Igreja ‘oficial’, ou seja, de uma igreja que se assume como apresentação e representação de um Estado, deixando assim de representar a comunidade; ou a diferença entre ser indivíduo do ponto de vista numerológico, para utilizar os termos de Kierkegaard em Uma Crítica Literária, e ser o indivíduo singular.
Divido a palestra de hoje em três partes. Na primeira, começo por definir com maior rigor a proposta de simultaneidade de apresentação e de representação, tal como exposta no capítulo do erótico-musical, de Ou-Ou. Um Fragmento de Vida. Na segunda, demonstro como o conceito de virtuosismo, tal como Kierkegaard o usa, reflectindo a raiz musical, é o conceito-chave para que se entenda a profundidade da proposta de simultaneidade de apresentação e de representação, escolhendo o caso Mynster como exemplo.
Na terceira parte,demonstro como a experimentação poiética baseada nasimultaneidade de apresentação e de representação, é fundamental na escrita de Kierkegaard, quer em textos de natureza mais religiosa, ou mais filosófica, através da análise de alguns comentários de Kierkegaard sobre si próprio como autor, designadamente, em relação a voz e a disposição (Stemme/Stemning).
 
PARTE I
 
No capítulo do erótico-musical a simultaneidade de apresentação e de representação não é desenvolvida de forma tratadística. O capítulo tem diferentes partes e em cada uma delas, há um maior ou menor tratamento desta matéria. Assim, encontramos a teoriaexpostanos comentáriosàs personagens, à estrutura da ópera mozartiana, e também em considerações mais abrangentes, aplicáveis a outras obras de artes, sobre o que é uma obra-prima e sobre o que é a imortalidade do autor que a cria, e mais porfundamente, na secção dedicado aos estádios do desejo. Vejamos.
 
  1. No plano das personagens
Uma personagem apresenta – em palco, através do canto, isto é, da música e da palavra – uma ideia, e essa mesma personagem é representante universal dessa ideia. Como já mencionei, o protagonista da ópera apresenta e representa a sensualidade na sua condição genial. Mas é na secção dedicada aostrês estádios do erótico-musical que a teoria sobre a simultaneidade de apresentação e representação se torna mais clara. Kierkegaard recorre a três personagens de três óperas diferentes de Mozart, designadamente: Cherubino, de As Bodas de Fígaro, Papageno, de A Flauta Mágica, e Don Giovanni, da ópera homónima.Cherubino apresenta e representa o desejo em sonho, o desejoque está latente no sujeito e que o indivíduo vê despertar, aprendendo a reconhecer esse desejo e a viver com ele em si. Papageno apresenta e representa o desejo que se agita e procura activamente um objecto para conseguir concretizar o seu desejo. Don Giovanniapresenta e representa o desejo que, tendo encontrado um objecto no qual poderá consumar esse desejo que o comanda, está focado em atrair esse objecto de desejo para si. Cada uma destas figuras apresenta e representa um estádio evolutivo do desejo – Kierkegaard chega a falar de metamorfoses, como as da borboleta. Do interior, em Cherubino, para o exterior, em Papageno, até atingir uma dinâmica interrelacional, em Don Juan.
 
  1. No plano da ópera
Como disse logo na abertura desta palestra, não só a personagem principal como também a ópera apresentam e representam a sensualidade, na sua condição pristina, na sua genialidade. Isto acontece pela junção de dois factores: por um lado, na teoria dos três estádios do desejo, defende-se que estes estão continuamente em movimento, pois o terceiro estádio do desejo mantém em si os outros dois. Por outro lado, nas considerações tecidas sobre a natureza da música em relação a outros meios de expressão artística, a música é classificada como o médium mais abstracto, e, por conseguinte, como aquele que está mais apto a apresentar e representar aquela que é também a ideia mais abstracta – precisamente, a ideia de sensualidade na sua essência primordial[3].
 
  1. No plano da avaliação da obra de arte
A ópera de Mozart é classificada como obra-prima porque nela se torna impossível distinguir entre matéria e ideia, ou seja, entre o meio de expressão ea forma que lhe dá estrutura, e o conteúdo nela contido – ou seja, apresentare representar algo em arte é indissociável do modo como está apresentado e do modo como representa esse algo. Em determinado passo, o entusiasta A afirma mesmo que a ópera de Mozart apresenta e representa a ideia de sensualidade pristina recorrendo a formas que são impossíveis de repetir, e que para apresentar e representar a ideia de sensualidade pristina novamente seria necessário compor novamente Don Giovanni.
 
  1. No plano da imortalidade da obra clássica e do autor clássico
A obra de arte que atinja os três planos anteriores é designada como obra clássica e o seu criador, como autor clássico, com direito a entrar na galeria dos grandes – os inesquecíveis e, por isso, imortais. Para o autor do capítulo do erótico-musical, só a linguagem musical é capaz de uma representação imediata e, por isso, é perfeitamente coerente que uma ópera possa constituir uma representação imediata de uma ideia abstracta, embora não exista género musical com tantas convenções formais e tantas mediações como na ópera.
 
 
 
Em suma:
- Aópera DonGiovanni e o protagonista Don Giovanni representam, então, uma mesma ideia poético-filosófico-musical
- A ópera é uma obra clássica porque o tema que desenvolve é perfeitamente representado pelo protagonista e encontra na música, melhor dizendo, na música dramático-lírica, o meio de expressão ideal
Estes dois pontos tornam possível uma representação imediata da ideia de sensualidade, de tal modo que perdura no tempo histórico, afinal a condição necessária para que se alcance a imortalidade.
- Não há autores imortais que não tenham criado uma obra imortal, nem há obras imortais que não tenham sido criadas por um autor que se fez imortal por essa obra.
Este último ponto torna a posteridade feliz na eterna recordação do autor e da obra.Por isso, a conclusão do capítulo do erótico-musical termina com a felicidade suprema de A que soube avaliar e reconhecer Don Giovanni como a maior de todas as obras-primas. E todos os que partilharem esta sua opinião partilham também a sua beatitude e a do próprio Mozart.
 
PARTE II
Passemos agora ao caso do virtuoso e do virtuosismo.
Tanto na primeira, como na segunda parte de Ou-Ou, ocorrem usos do termo «virtuoso» que remetem desde logo para o conceito de virtuosismo, tal como é quase sempre usado na obra de Kierkegaard. Com efeito, há apenas duas ocorrências em toda a obra kierkegaardiana nas quais o termo denota a existência de virtudes exclusivamenteéticas, designadamente, num passo dos Diários, quando, falando de Sócrates, define o heroísmo como «o virtuosismo do que é universalmente humano», e em Prefácios quando associa o virtuosismo à promessa
[4].
Antes de desenvolver este tópico, devo realçar dois aspectos. O primeiro é que reconhecerque há confluência total na apresentação e na representação é tão importante quanto entender que, em alguns dos que são identificados como virtuosos, a ruptura dessa impossibilidade gera um abismo inultrapassável. Este abismodetermina a condenação desse falso virtuoso, muitas vezes apelidado de ‘Fusker’, ou seja, de alguém que quer que os outros acreditem que ele éconhecedor de uma matéria, mas que na realidade nada sabe do assunto, ou que é muito bom no seu ofício, mas na realidade é apenas mestre na arte de encobrir as imperfeições. Ou seja, o ‘Fusker’faz-se passar aquilo que não é no convívio social ou na sua profissão.Desta forma, ele atraiçoa a virtude da sua arte, ao passo que o virtuoso é fiel à virtude da sua arte, ao que ela contém de melhor, de mais autêntico. É esta a origem do termo virtuoso – la virtù dell’arte.E é neste mesmo sentido que para Kierkegaard, abusar de um virtuosismo, seja na linguagem musical ou na verbal seja em outro qualquer meio de expressão,acaba por tornar o falso virtuoso um ‘Fusker’, porque dá lugar a uma ruptura abissal entre a idealidade e a realidade de uma ideia, de um lado, e a materialização da ideia numa representação que se quer com virtude na sua arte,seja no ofício ou no discurso, do outro lado. 
O segundo aspectoacrescenta uma outra característica a este abismo: em Kierkegaard, o virtuoso é irreversivelmente condenado quando a ideia que ele simultaneamente apresenta e representa é considerada imoral ou errada e carece de fundamento ético.E podemos dizer que reside aqui, precisamente, a crise de representação que Kierkegaard denuncia com veemência. Adiante mostrarei com maior pormenor o caso de Mynster, mas deixo já aqui uma passagem deUma Crítica Literária, de 1846, que exemplifica claramente o que acabo de dizer. Aliás, Uma Crítica Literáriaobra é uma obra já contemporânea do declínio do músico virtuoso durante a década de 1840 e, em certa medida, a censura de Kierkegaard é consonante com o amadurecimento do público diante das exibições de músicos que compensavam a falta de conteúdo das suas composições com uma exibição meramente virtuosística. Nos parágrafos iniciais da secção intitulada «A Época Contemporânea», Kierkegaard critica a falta de comprometimento e de proactividade que caracteriza os tempos modernos, uma época em que tudo se anuncia publicamente até mesmo quando não há nada para tornar público – é a era da antecipação. Logo de seguida, Kierkegaard põe a nu a habilidade com que os políticos, os teólogos e os homens de ciência enganam os respectivos públicos, levando-os a pensar que eles apresentam e representam o caminho certo que todos devem seguir. Note-se que o uso de «virtuoso» e de «virtuosismo» não é de todo irónico, pois, na realidade, o que está aqui em causa é o abuso de técnica (neste caso, retórica) para atingir uma excelência discursiva muito bem trabalhada que escondea ausência de profundidade intelectual, cívica ou moral, por parte do executante:  
 
Por contraste com a era da revolução enquanto agente actuante a era contemporânea  é a era dos anúncios, a era dos cartazes à mistura: não acontece nada, porém, acontece desde logo um anúncio. Na era contemporânea, uma rebelião seria o que de mais impensável há; para a prudência calculista deste tempo, semelhante expressão de força surgiria como ridícula. Em contrapartida, talvez um virtuoso da política fosse capaz de uma surpreendente prestação artística completamente diferente. Seria capaz de escrever uma convocatória que propusesse uma sessão da assembleia geral para decidir uma revolução e com tantas cautelas que até mesmo o censor poderia deixar que ela passasse; e em seguida, à noite, seria capaz de produzir esta impressão tão ilusória: que tinham sido eles quem tinha feito a rebelião; após o que se despediriam perfeitamente tranquilos – depois de terem passado uma noite muitíssimo agradável. A aquisição de uma enorme e sólida sabedoria seria quase impensável entre os jovens do nosso tempo; achar-se-ia isso ridículo. Em contrapartida, um virtuoso da ciência seria capaz de prestar uma façanha inteiramente diferente. Num plano de subscrição, seria capaz de delinear alguns traços conducentes a um sistema abrangente, e fá-lo-ia de tal forma que junto do leitor (do plano de subscrição) produziria a impressão de que ele já havia lido o sistema. Pois para trás ficou o tempo dos enciclopedistas, o daqueles que, designadamente, escreviam fólios com férrea aplicação; agora chegou a vez dos enciclopedistas de apetrecho ligeiro que, en passant, se livram de toda a existência e de todas as ciências. Uma renúncia profundamente religiosa ao mundo e ao que é do mundo, alicerçada numa negação diária, seria impensável entre os jovens do nosso tempo: em contrapartida, um em cada dois candidatos de Teologia teria virtuosismo suficiente para fazer algo ainda mais prodigioso. Seria capaz de projectar uma instituição social cujo propósito não seria menos do que salvar todos os que estão perdidos. SKS 8, 68.
[5]
 
Kierkegaard critica ferozmente este uso abusivo do virtuosismo não só porque esconde a falta de ideias, mas porque é usado deliberadamente para «enganar» o público, o ouvinte. Há uma passagem de Doença para a Mortena qual, através da reacção do público, se expõe claramente a distância entre o virtuosismo do discurso e a legitimidade ou crença naquilo que constitui o objecto do discurso, e isto, por sua vez, remete para uma carência de efeito ético-religioso. Repare-se como o termo «virtuosismo» é usado como uma espécie de interface entre o campo de estético-ético e o campo do ético-religioso. Nesta citação, o termo de comparação é Sócrates:
 
Dá tanto para rir como para chorar, quer sejam todas estas garantias de se ter entendido e concebido o que é supremo, quer seja o virtuosismo com o qual muitos, in abstracto, sabem apresentar isto, num certo sentido, perfeitamente bem – dá tanto para rir como para chorar, quando se vê que todo este saber e entendimento quase nenhum poder exerce sobre a vida dos homens, que estes nem da mais remota maneira exprimem o que entenderam, antes exprimem como que o oposto. SKS 11, 203.
[6]
 
Para o pensador dinamarquês, o verdadeiro virtuoso acaba por serum caso perfeito de co-existência e de inter-relação das esferas de existência, tal como surgem em Frater Taciturnus (SKS 6, 408-410)
[7], com a defesa de uma esfera ética da existência como um espaço de passagem permanente entre a estética e a religiosa, o que implica a possibilidade de descontinuidadese, consequentemente, de diferentes momentos de arrependimento, mas também nas Cartas do Juiz quando afirma as três esferas devem ser vistas como membros de uma aliança, em termos políticos, trabalhando, portanto, todas elas, para o mesmo fim[8].
Mas para perceberemos inteiramente como esta coincidência de esferas pode realmente ter lugar na vida real, temos de aprofundar as raízes musicais dos conceitos de virtuoso e de virtuosismo. Em primeiro lugar, este fenómeno não tem a ver com a criança prodígio, como foi o caso de Mozart e de Liszt. Ao atribuir o epíteto de criança prodígio reconhecia-se a revelação precoce de um génio, ao passo que o termo virtuoso designa o músico capaz de grandes feitos técnicos – virtuosísticos– sem que necessariamente este músico seja dotado de génio. Com efeito, uma das regras para a execução virtuosística, ainda hoje, consiste em dominar a técnica de forma tão excelente que de imediato o publico ouvinte se deleita. A queda de popularidade do músico virtuoso na década de 1840, aliás, deveu-se ao facto de o público, progressivamente se ter apercebido do abismo entre o virtuosismo técnico e a genialidade ou capacidade inventiva do músico em questão.
Há todavia dois casos de virtuosos da músicaque ultrapassaram esta tensão entre virtuosismo e criatividade e que na história da música se tornaram nomes maiorese imortais: Niccòlo Paganini e Franz Liszt. Como tive oportunidade de explicar repetidamente, de há dez anos para cá, não me restam dúvidas de que Kierkegaard assistiu ao auge da carreira de Liszt em Berlim em 1841-42, o que poderá ter consolidado as ideias do filósofo sobre esta questão. Digo «consolidado», porque já em Sobre o Conceito de Ironia, Sócrates é apelidado de virtuoso. Mas o impacto visual causado por Liszt e o fenómeno de Lisztomanie nascido em Berlimnão pode nem deve ser subestimado, pelas seguintes razões:
- Em palco, Liszt,virtuoso do piano, reúne numa só pessoa três vertentes: O compositor que compõe através da recordação de outras obras/outros compositores; o músico prodigioso; e o músico enquanto performer, o repetidor.
- Daqui decorre que, como virtuoso da composição que toca as suas próprias obras, Liszt é um caso de materialização de dois eixos estruturantes do pensamento kierkegaardiano, designadamente, a repetição de recordações e a recordação de repetições, a par da simultaneidade de apresentação e representação.
Vejamos como.Berlioz afirmou que Liszt «falava piano» (Berlioz, 1996, p. 189), ou seja, utilizava a música tocada e composta para o piano como seu meio de expressão. Em palco, Liszt apresentava-se como compositor, como intérprete, como crítico e divulgador de outro compositor, pois muitas das suas peças são transcrições de outros compositores, deixando ver o profundo trabalho de hermenêutica musical desenvolvido pelo Liszt; e ao mesmo tempo apresentava-se como músico virtuoso. Além disso, em Liszt, a transcrição de outros compositores é também acompanhada da transcrição de si próprio, pois numerosas peças foram compostas em diversas versões, por exemplo, para piano a duas e a quatro mãos ou para dois pianos. Deste modo, Liszt virtuoso e Liszt compositoré um caso desimultaneidade de apresentação e de representação: apresentação de si mesmo como compositor e como representação de outros compositores, quer no suporte material da partitura, quer em imagem visual e sonora durante um recital.
Neste sentido, Liszt incarna o movimento idêntico, mas em sentido contrário, da recordação e da repetição, tal como Kierkegaard o dirá pela mão de Constantin Constantius em A Repetição: «Repetição e recordação são o mesmo movimento, apenas em direcção oposta; pois aquilo que se recorda, foi, repete-se para trás; enquanto a repetição propriamente dita é recordada para diante». De facto, durante a composição de transcrições, recordar uma ópera, um compositor, é repetir, transcrevendo a música que outros criaram; durante a execução, repetir essa música é recordar para si, mas também para todo o público, não só o que esses outros compositores criaram, essas criações que o próprio público vira e ouvira anteriormente, fruto de um processo continuado deanálise crítica de obras musicais, na esmagadora maioria suas contemporâneas, realizado pelo compositor/transcritor. A relação recíproca estabelecida entre recordação e repetição no compositor/pianista estimula a imaginação e a percepção do ouvinte/espectador, podendo mesmo dizer-se que público e virtuoso entram num processo dialógico no qual a repetição e a recordação constituem o fulcro do que é comunicado, ao mesmo tempo que se torna possívelao ouvinte recriar ou recomeçar os seus próprios movimentos de repetição e de recordação, musicais, ou de outra natureza.
Sem ter hoje tempo para desenvolver tanto quanto eu o desejaria, relembro a vertente religiosa da própria personalidade Liszt, revelada desde o início em muitas composições de inspiração religiosa, e materializada numa fase posterior da sua vida, quando tomou ordens menores. Mas é importante sublinhar este aspecto para vermos como o caso de Liszt, na prática de composição e de pianista virtuoso, cabe dentro das três esferas da existência com a particularidade de essas três esferas co-existirem e serem observáveis em simultâneo: a estética, na representação da sua própria arte da transcrição e na sua apresentação como compositor e virtuoso; a ética, com uma vertente quase deontológica,na selecção e continuada divulgação de peças musicais, e, com uma vertente propedêutica, na formação e orientação do gosto do público, desenvolvendo-lhe critérios de apreciação estético subordinados ao reconhecimento da virtude da arte musical; e a religiosa, presente na relação com o objecto representado, pois para além de muitas obras de música sacra ou de natureza religiosa, há muitas transcrições que revelam um forte pendor, no mínimo, ético-religioso (Réminiscences de Don Juan está neste caso).
Ao longo da obra de Kierkegaard encontramos mais de cem ocorrências de «virtuoso» ou de «virtuosismo», e esse uso não é de todo irónico – o que está em jogo é demonstrar uma capacidade exímia de actuação em determinado campo de actividade, seja ele qual for: filosofia, sedução, dramaturgia. Sócrates, em Sobre o Conceito de Ironia, é virtuoso porque é capaz de falar com gente de todas as condições e de, assim, praticar uma filosofia imersa na vida, e este virtuosismo na esfera social permite-lhe atingir a excelência na esfera ética, através do domínio da ironia:
 
Em Sócrates, havia alguma coisa de entusiasta do conhecimento […]; mas isso, todavia, não o afastava da vida, ao invés, com a vida estabelecia o mais vívido contacto; mas a sua relação com ela era a sua relação puramente pessoal com os indivíduos, esta sua reciprocidade de acção consumava-se como ironia. […] um virtuoso igualmente grande no contacto casual. Falava igualmente bem com tanoeiros, alfaiates, sofistas, estadistas, poetas, com jovens e velhos, falava como eles igualmente bem acerca de tudo, porque em todo o lado encontrava uma tarefa para a sua ironia. Mas apesar de todo o seu virtuosismo pode afinal ter-lhe acontecido [ter dado com um interlocutor medíocre], na medida em que, não tanto como opina Cícero, fazia descer a filosofia dos céus e levava-a para dentro das casas deles. SKS 1, 228.
[9]
 
Johannes e A são descritos pelo Juiz como virtuosos da filosofia e da sedução, pois põem em prática o fruto da sua reflexão. Aliás, no Diário, Johannes afirma que a arte de seduzir é para ser aplicada com virtuosismo (SKS 2, 366). Eugène Scribe é um virtuoso na escrita de diálogos e de cenas de interacção cómica (SKS 2, 243). Mas, sem dúvida, que a personalidade mais interessante, para nós, a receber a classificação de «virtuoso» é o Bispo Mynster, como veremos.
Já em 1839, Kierkegaard fazia uma comparação,no plano moral, entre sermões, que classificava de «pretensões egoístas» (EE:99, SKS 18, 37), e a oração do fariseu. Por maior que seja «o talento e o virtuosismo» com que são apresentadas, nada representam quanto à autenticidade e à sinceridade de quem as profere, na sua relação com Deus:
 
Nas egoístas pretensões a prédicas, há posição que em tudo é semelhante à do fariseu, na intenção moral, quando ele diz: agradeço-te, Deus, por não ser como os outros homens, uma posição que crê ficar mais próxima da divindade por via do talento e do virtuosismo na apresentação. EE:99, SKS 18, 37.
[10]
 
A crítica de Kierkegaard à idade contemporânea, à possibilidade de uma igreja verdadeira, e ao próprio Mynster, centra-se continuadamente na ruptura da simultaneidade de apresentação e de representação na sua ruptura abissal entre apresentação e representação. A idade contemporânea, a Igreja oficial, o Bispo, apresentam-se falsamente como representantes de algo que, à partida, já contém em si elementos eticamente reprováveis, e acabam por personificar a crise de representação. Apesar de em 1854, Kierkegaard ainda classificar o Bispo como «virtuoso» e de lhe reconhecer um indubitável «virtuosismo», que ele próprio não se sente capaz de descrever cabalmente (Papir 478 (1854), SKS 27 612)
[11], este reconhecimento serve apenas para sublinhar o abismo que separa a apresentação da representação em Mynster[12], deixando antever que Mynster é um ‘Fusker’. Sublinhe-se igualmente que esta crítica a Mynster é contemporânea do reiterado elogio à ironia socrática – Sócrates personifica a ironia, e a ironia está acima de truques na eloquência virtuosística:
 
Onde residia propriamente a ironia de Sócrates? Seria em expressões e maneiras de falar ou coisas do género? Não, semelhantes bagatelas, porventura o virtuosismo para conversariroonicamente, coisas destas não constituem um Sócrates. Não, todas a sua existência é, e foi, ironia. NB35:2, SKS 26, 363.
[13]
 
Em O Instante, a eloquência e o saber do BispoMynster acabam por ficar radicalmente afastados de qualquer conotação positiva dos termos «virtuoso» e «virtuosismo». Como virtuoso, Mynster é um caso de «ilusão óptica»(Oi10 I, SKS 13 393-394; e Papir 469, SKS 27, 602) e a sua eloquência é apenas um caso de virtuosismo da equivocidade(NB33:33, SKS 26, 272), do falar a duas vozes – Tvetydighed:
 
E era nisto que o Bispo Mynster praticava com virtuosismo de mestre...; e todo o governo da Igreja por parte do Bispo Mynster se orientava por esta ilusão de óptica; o seu virtuosismo na equivocidade tornara-se a sua segunda natureza, [...] ao longo de uma série de anos, levou consigo com um virtuosismo digno de admiração os contemporâneos, cristãmente falando. NB33:33, SKS 26 272.
[14]
 
Nos Diários, o ventriloquismo é tratado imediatamente após uma entrada sobre Mynster, e é definido como «uma maneira de falar de maneira a que não possa ser determinado quem é o falante, […] como se não houvesse ninguém a falar» (NB33:32, SKS 2,6 271)
[15]. Mas a censura que é feita a quem se apresenta por interposta pessoa, como alguém que está literalmente a ser manipulado, tem raízes muito anteriores à fase tardia da produção kierkegaardiana. Num artigo de jornal publicado em1845, «Um Comentário passageiro sobre uma Particularidade de Don Juan»,um texto a que ainda hoje voltarei, o critério para aferir uma boa prestação lírica reside na afinação perfeita entre voz e disposição [Stemme/Stemning], e só esta é capaz de, por sua vez, criar uma disposição perfeitamente afinada com o público (SKS 14, 69). Por outras palavras o instrumento voz tem de estar afinado, mas se a própria disposição do seu possuidor não tiver sido afinada pela reflexão, a voz nunca poderá deixar transparecer – isto é, apresentar e representar simultaneamente – o seu dono.
Como vimos, Sócrates e Scribe não constituem exemplos de ventriloquismo, pois são apresentados como casos perfeitos de virtuosismo: respeitam a virtude das suas artes, e são virtuosos capazes de produzir uma total sintonia entre o ouvinte/espectador e o público/interlocutor, ao contrário de Mynster, que é um virtuoso na arte da equivocidade. O Bispo já não representa a sua comunidade, pois apresenta-se fazendo uso de uma voz que não é a da verdadeira igreja. É a voz de uma igreja que, segundo Kierkegaard, em 1847, necessitava de uma «nova teoria militar teológica», porque era apenas capaz de mostrar virtuosismo na derrota (NB3:75, SKS 20, 279). A igreja proclamada por Mynster acreditava que alguém se poderia tornar cristão através de um adestramento, de um enobrecimento do que é naturalmente humano, o que está na base da acusação de Kierkegaard a Mynster – a de que este confunde o Cristianismo com refinamento cultural ou cultura, com Dannelse. Ora, para Kierkegaard, isso leva o cristão apenas a sentir um virtuosismo inteiramente desenvolvido no seu eu, mas não o leva a apresentar e a representar Cristo (NB3:16, SKS 20, 251).
 
PARTE III
A pluralidade de autores na produção kierkegaardina é acompanhada de uma descrição rigorosa das suas múltiplas funções, quando as desempenham. Ora, esta complexa instância autoral permite a Kierkegaard nunca cair em equivocidade e ainda menos em ventriloquismo. Há pelo menos duas ocasiões em que Kierkegaard se refere ao seu próprio virtuosismo no uso da pluralidade de autores e de modalidades de comunicação. Quando nos Diários explica a revogação dos pseudónimos, tornada pública no apêndice conclusivo dePostcriptum, afirma que se trata de um «passo magnânimo para os outros», considera que, tal como Sócrates, tem qualidades para o fazer por possuir «virtuosismo pessoal, o de se relacionar com todos».Vale a pena escutar o que ele diz:
 
Eu era o único que tinha pré-requisitos para conseguir fazê-lo com ênfase, os seguintes: 1) do ponto de vista de Goldschmidt, que me havia imortalizado e que em mim via o seu objecto de admiração; 2) do ponto de vista de eu ser um autor espirituoso; 3) do ponto de vista de não me ter dado com os mais importantes, ou de um modo geral com algum partido; 4) do ponto de vista do virtuosismo pessoal, o de se relacionar com todos; 5) do ponto de vista de um renome até aí brilhante, que literalmente não tivera uma única mancha de crítica ou coisa afim; 6) do ponto de vista de ter reservado altruisticamente dinheiro para ser autor; 7) do ponto de vista de ser solteiro, independente, etc. NB17:13, SKS 23, 172.
[16]
 
Repare-se como esta auto-descrição cabe na categoria de recordação de génio imortal, tal como ele próprio fez em relação a Mozart no capítulo do erótico-musical. Tal como Mozart, Kierkegaard foi imortalizado e alvo de admiração – quer ela seja negativa ou positiva; está acima de Scribe – não é simplesmente cómico, domina o Witz, o que o define, nos termos de Friedrich Schlegel, como escritor filosófico, como crítico do que é social, no mais abrangente dos sentidos; é independente de todos os seus contemporâneos; tal como Sócrates, dá-se com todos os sectores da sociedade; a sua condição financeira deixa-o livre de imposições ou cedências impostas por mecenas, igrejas ou família. Em suma, ao contrário de Mynster, o seu valor e as suas virtudes estão inteiramente dedicadas ao serviço da sua virtù como criador, e não se deixam corromper.
A segunda ocasião reporta-se à justificação avançada por usar um pseudónimo, Inter et Inter, ainda em 1848,para publicar A Crise e Uma Crise na Vida de uma Actriz.Kierkegaard recorda o encanto do virtuoso na sua performance nos seguintes termos:
Antes de prosseguir, era pela última vez tão importante, e tão verdadeiro quanto à minha individualidade, uma vez mais ainda aliciar a navegação, tentar, e tanto quanto possível ao mesmo tempo, dar uma impressão presentânea do virtuosismo da minha diferença. NB6: 29 SKS 21, 27.
[17]
 
O que torna o seu virtuosismo diferente e único é o facto de as múltiplas vozes de que faz uso não esconderem ausência de ideias e de reflexão nem pretenderem enganar o ouvinte/leitor. Na realidade, é este virtuosismo que lhe permite atingir a excelência em todas as matérias que quer abordar e, ao mesmo tempo, representar legitimamente essas mesmas ideias. E tudo isto é feito de maneira imediata, sem rupturas, sem abismos intransponíveis, através de um processo poiético que repete e recorda continuadamente a singularidade de cada autor em cada obra ao longo de uma vida como pensador e escritor. Ora, foi justamente em 1848 que Kierkegaard escreveuO Ponto de Vista da minha Obra como Autor, obra na qual o termo «enganar» é determinante para explicar à posteridade a sua instância autoral. Como sabemos, Kierkegaard afirma que do princípio ao fim ele foi sempre um único autor, que em cada uma das suas obras apresentava aquilo que representava. É óbvio que esta afirmação é verdadeira, precisamente porque ele é um através de ser muitos, cada um deles com a ambição de atingir o patamar superior de virtuosismo, no qual a virtù artística que possibilita a criação de cada uma dessas obras de arte não põe em causa a excelência moral, porque a excelência moral de cada autor é também visível no seu domínio da arte. A heterogeneidade destes autores é determinada pela ideia, pela matéria de cada obra, e também pelo género literário em que esta é escrita, e é trabalhada poieticamente para que se atinja essa afinaçãototal com o leitor, combinado arte e experimentação nos domínios estético, ético e religioso. Este patamar superior de virtuosismo faz coincidir a virtude artística, o respeito observado na criação de uma obra de arte, e uma performance verdadeira que deixa ver essa mesma virtù, com a virtude moral, aquela que reside em ser verdadeiro consigo mesmo, em ser transparente, em ter-se escolhido a si próprio sem enganar o interlocutor a quem se dirige. E por esta porta entramos novamente na confluência das esferas estética, ética e religiosa em Kierkegaard.  
Termino com um parágrafo extraordinário, o terceiro, do já mencionado artigo «Um Comentário passageiro sobre uma Particularidade de Don Juan». Este parágrafo oferece a mais rigorosa descrição do que é a simultaneidade de apresentação e de representação de uma ideia através do desempenho virtuosístico, neste caso, do cantor de ópera. Neste parágrafo, o desempenho do cantor lírico atinge a perfeição se, quando ele canta/desempenha o que está escrito na música e no libreto, e que foi composto e escrito por outros, fizer ouvir também a sua própria reflexão sobre essa música e palavra, se, como diz Kierkegaard, ele projectar na voz «o piano da disposição». Os termos determinantes neste parágrafo são os já citadosStemme/Stemning, o que implica que está em jogo a voz, o modo como se dá voz ao que se quer dizer, o efeito obtido na disposição do ouvinte e a desejada afinação com o ouvinte, já que Stemning é tanto ‘disposição’ como ‘afinação’. É este desempenho que Kierkegaard atinge através dos seus múltiplos autores os quais, para com ele, mantêm a relação do souffleur com os actores em palco – ele sopra-lhes as ideias, os conceitos, e, como autores, eles são instâncias reflexivas, capazes de desempenhar, ou seja, de apresentar e de representar, de forma transparente essas mesmas ideias e conceitos, num movimento de pensamento que lhes é próprio. Ouçamos então Kierkegaard, e peço aos meus ouvintes que se recordem de que, ao ouvir as palavras «voz», «disposição», «afinação», estão a escutar o tronco – Stem – do qual brota toda a produção de Kierkegaard:
 
De um cantor, exige-se primeiramente voz, logo, exige-se desempenho, o qual é a unidade da voz e da disposição (afinação), e nada mais do que a maleabilidade da voz na coloratura e nos trilos, pois, como possibilidade, ela é a comensurabilidade recíproca e, como realidade, é a consonância da voz e da disposição (afinação) no desempenho; por fim, exige-se do cantor dramático que a disposição (afinação) seja a certa em relação à situação e à individualidade poética. Quando o cantor tem voz e lhe incute disposição, então, tem arte na paixão; se for simultaneamente actor, através de mímica, conseguirá ainda abraçar os contrastes no mesmo tempo. Quanto mais refelectido ele estiver e mais exercitado em fazer rolar a voz no piano da disposição tanto mais serão as combinações de que dispõe e, desta forma, conseguirá cumprir plenamente as exigências do compositor, obviamente quando a obra do compositor souber colocar exigências ao desempenho do cantor, e não pertencer às óperas impossíveis de tolerar e de executar. Se estiver menos reflectido, na disposição e no carácter não obterá uma amplitude tão grande; mas há uma coisa que permanece: todo o fundamento mais universal da disposição, o conseguir incutir fantasia na voz, o de conseguir cantar com fantasia. Um desempenho como este foi o que eu admirei no Sr. H. no ponto de que falávamos. SKS, vol.14, 69.
[18]
 
[1]Ao utilizar a palavra Genialitet, A envolve o conceito do erótico-musical numa fina rede de conotações que aqui aponto sucintamente para justificar a escolha da palavra genialidade, em vez da perífrase ideia primordal ou elemental. A genialidade é a qualidade ou o dom do que possui génio, e em francês e em alemão, o mesmo termo «génio», como é sabido, encerra os conceitos expressos em latim por ingenium e por genius, cuja discussão domina as teorizações estéticas ao longo dos séculos XVIII e XIX, sejam de pendor mais poético ou de carácter mais filosófico. A concepção demiúrgica do artista percorre diferentes pensadores e poetas do Romantismo alemão de Jena, pressentindo-se, nesta definição de A da ideia do erótico-musical, reflexos quer dos fragmentos de Novalis (Friedrich von Hardenberg, 1772-1801) sobre o génio como sendo a condição natural do homem, quer da ideia de uma concepção órfica do universo, concedendo à música o poder de dar forma ao mundo original. Por outro lado, no contexto deste capítulo, A atribui outras valências ao termo Genialitet, visto que a representação do erótico-musical em Don Giovanni e por Don Giovanni é possível apenas devido ao génio de Mozart, relacionando-se assim a ideia de génio com a de imortalidade e de clássico.
[2] A demarcação entre o «sedutor»Johannes e o «impostor» Don Giovanni fundamenta-se, pois, no domínio de linguagens diferentes, que determinam uma capacidade ou uma incapacidade em verbalizar sentimentos, a possibilidade ou a impossibilidade de reflectir e, no limite, a vivência do desejo através da mente ou através do corpo. A considera que o verdadeiro sedutor terá que reflectir e possuir auto-consciência, e já foi demonstrado que a análise de A isenta Don Giovanni de reflectir e de recordar. A esta personagem falta-lhe ainda a capacidade de exprimir verbalmente «estratagemas, intrigas e manhas subtis» e dotá-lo dessa capacidade, seria um acto contranatura, pois o domínio da linguagem verbal implicaria que Don Giovanni não representasse a ideia erótico-musical imediata da sensualidade:
 
Um sedutor deve então estar na posse de um poder, que Don Juan não possui, por mais bem equipado que ele esteja: o poder da palavra. Assim que lhe dermos o poder da palavra, ele cessa de ser musical, e o interesse estético fica diferente.(SKS 2: 103).
 
Quanto a Johannes, a sedução é, à partida, cosamentale: A considera que ele é um caso nítido de exacerbatio cerebri e que seduziu Cordelia «com a ajuda dos seus dons mentais e espirituais» («Ved Hjælp af hans Aandsgaver», SKS 2: 294)[2]. Johannes auto-descreve-se como um esteta que encontra na mulher um objecto de observação inesgotável (SKS 2: 406), e as últimas palavras do diário, «observações eróticas» («erotiske Iagttagelser», SKS 2: 432), resumem de modo eloquente a sua acção.
No ensaio sobre os estádios erótico-imediatos, o amor psíquico é caracterizado antiteticamente ao amor sensual. O primeiro prolonga-se no tempo e procura atingir um ideal de felicidade, que consiste em desejar e ser amado, e o segundo vive intensamente o momento e preocupa-se apenas com a vitória, privilegiando a quantidade de conquistas e não a sedução como um processo que se desenvolve individualmente (SKS 2: 99-100). As páginas do «Diário do Sedutor» são inicialmente lidas e sequenciadas por A, responsável pela sua edição, e antecedidas de uma introdução de nove páginas e da epígrafe, retirada da ária do catálogo, Sua passion predominante/ È la giovin principiante. A parece assim preparar o leitor para o diário de um sedutor que se deixa dominar pela quantidade de conquistas, sugerindo que o tema do amor erótico será desenvolvido em continuidade com o que já fora exposto sobre o desejo e a sedução, o sedutor e a seduzida no capítulo sobre o erótico-musical. Todavia, se neste capítulo se tratava de demonstrar a ideia filosófico-musical de Don Giovanni enquanto representação imediata da ideia de sensualidade, e, por conseguinte, de representar a ideia do amor sensual, Johannes, o sedutor do diário, representa a ideia filosófico-poética do amor psíquico. Johannes é caracterizado como o verdadeiro sedutor, sempre reflexivo e racional, dominador da linguagem verbal e não da musical, demonstrando uma técnica, um comportamento e um bravado que o projectam através de um estilo literário próprio, criando um efeito semelhante às características da voz humana enquanto instrumento, que permitem a imediata identificação das qualidades técnicas, das capacidades interpretativas e do pathos do cantor.
[3]Don Giovanni materializa-se pela associação feliz e acidental de outros dois factores: a música é o medium mais abstracto, porque é também o que mais se afasta da linguagem verbal, e o conceito de sensualidade é a ideia mais abstracta, completamente fora do domínio do espírito, representável por um único indivíduo. Além disso, a música não ocupa fisicamente espaço e não se inscreve num tempo histórico, e essa ausência de fixação espacial e temporal, de acordo com A, torna-a particularmente apta a exprimir essa ideia concebível mais abstracta, ou seja, a de sensualidade primordial.
[4] In Kierkegaard’s writings, among almost a hundred uses of the term, only on two occasions does it denote virtue in the ethical sense, and even so, the term bears a dual valence in the context. In a fragment from 1847, when what should be admired in Socrates is at stake, Kierkegaard’s observation concerning heroism as virtuosity still denotes the public recognition of the heroic feat as something that is simultaneously extraordinary and yet, attainable by every individual:
But the heroic concerns every particular individual; every individual could become a hero. The heroic does not concern the differences between people (to be a genius, artist, poet, or born into nobility, etc.); no, heroism is in the virtuosity of the universally human. (NB4: 10, SKS, vol.20, 292/KJN, vol. 4, 292)
In the next excerpt from Prefaces, the association of virtuosity with promise obviously engages the ethos of the one who makes the promise, since one inevitably has to keep it or break it. But on the other hand, if one wants to convince the other that the promise will be kept, one must first be able to use his persuasion skills convincingly, i.e. to present oneself as the representation of his own promise: “It is however, common and low to keep what one promises; on the other hand true high rank manifests itself precisely as virtuosity in promising, as the painter in Shakespeare’s Timon says: […].”(SKS, vol.4, 501/P 39).
[5]I Modsætning til Revolutions-Tiden som handlende er Nutiden Avertissements-Tiden, de blandede Bekjendtgjørelsers Tid: der skeer ikke Noget, derimod skeer der strax Bekjendtgjørelse. Et Oprør vilde i Nutiden være det Utænkeligste af Alt; en saadan Kraft-Yttring vilde forekomme Tidens beregnende Forstandighed latterlig. Derimod vilde maaskee en politisk Virtuos være istand til en ganske anderledes forbausende Konst-Præstation. Han vilde være istand til at skrive en Indbydelse, som foreslog en General-Forsamlings Afholdelse for at beslutte en Revolution, saa forsigtigt, at selv Censor maatte lade den passere; og derpaa vilde han om Aftenen være istand til at frembringe paa Forsamlingen et saa skuffende Indtryk, at det var den, som havde de gjort Oprør; hvorpaa de ganske | roligen vilde skilles ad – efterat have passeret en høist behagelig Aften. En enorm grundig Lærdoms Erhvervelse vilde næsten være utænkelig blandt Yngre i vor Tid, man vilde finde det latterligt. Derimod vilde en videnskabelig Virtuos være istand til at præstere et ganske anderledes Konststykke. Han vilde i en Subscriptions-Plan være istand til at henkaste nogle Lineamenter til et altomfattende System, og gjøre det saaledes, at det paa Læseren (af Subscriptions-Planen) frembragte det Indtryk, at han allerede havde læst Systemet. Thi Encyclopædisternes Tid er forbi, deres nemlig som med Jern-Flid skrev Folianter, nu er Touren kommen til de let bevæbnede Encyclopædister, der en passant gjør det af med hele Tilværelsen og alle Videnskaber. En dyb religieus Forsagelse af Verden og hvad Verdens er, fastholdt i daglig Fornegtelse, vilde være utænkelig blandt Yngre i vor Tid: derimod vilde hver anden theologisk Candidat have Virtuositet nok til at gjøre noget langt Vidunderligere. Han vilde være istand til at projektere et Selskabs Stiftelse, hvis Hensigt ikke var mindre end at frelse alle Fortabte.SKS 8, 68.
[6]Det er baade til at lee og til at græde over, saavel alle disse Forsikkringer om at have forstaaet og begrebet det Høieste, som ogsaa den Virtuositet, med hvilken Mange in abstracto vide at fremstille det, i en vis Forstand ganske rigtigt – det er baade til at lee og til at græde over, naar man saa seer, at al denne Viden og Forstaaen slet ingen Magt udøver over Menneskenes Liv, at dette ikke i fjerneste Maade udtrykker hvad de have forstaaet, men snarere lige det Modsatte.” (SKS 11, 203).
[7] Segundo Frater Taciturnus, a esfera estética é a da imediaticidade, a ética é descrita como uma fase de transição, mas também de exigência, por nela caber o arrependimento, ao passo que à esfera religiosa corresponde uma fase da realização descrita como um espaço sem limites, criado pelo arrependimento. Com efeito, a esfera ética é aqui descrita como um espaço de passagem permanente, descrevendo-se o arrependimento como um movimento dialéctico, que continuamente olha para trás. Ora, esta ideia de uma esfera ética da existência como um espaço de passagem permanente traz como correlato a co-existência destas esferas ao longo da vida e, por conseguinte, a possibilidade de descontinuidades, reflectindo, no mínimo, diferentes momentos de arrependimento (SKS 6: 408-410). Registe-se aliás que Kierkegaard representa contínua e simultaneamente na sua produção este conceito das três esferas: na esfera estética, inclui-se a relação com a própria obra, manifestada em particular na pluralidade de autores e de géneros literários; a esfera ética é preferencialmente visível na intensa e comprometida relação com o leitor, que adiante desenvolverei; e a relação do homem com Deus e de si próprio com o seu desígnio divino, que percorre de facto toda a obra de Kierkegaard, incluem-se na esfera religiosa. Até nos momentos em que mais convictamente fundamenta a sua condição de autor religioso, determinado pela providência divina, S. Kierkegaard acaba por reconhecer que habita estas diferentes esferas em simultâneo: «Enquanto as produções poéticas estavam a ser realizadas, o autor vivia por princípios determinantemente religiosos.» (SFV: 132)[7].
[8] Só se ama uma vez na vida; o coração fica preso ao seu primeiro amor — o casamento. Escuta e admira a consonância harmónica destas diferentes esferas. É o mesmo assunto, está tão‑somente expresso de uma maneira estética, de uma maneira religiosa e de uma maneira ética.(p. 76)
Se não conseguires chegar a ver o estético, o ético e o religioso como os três grandes membros da aliança, se não souberes manter a unidade das diferentes expressões que tudo toma nas diferentes esferas, então, a vida fica sem sentido,então,terá de te ser dada toda a razão na tua teoria favorita, segundo a qual se é possível dizer acerca de tudo: quer faças isso ou não faças,arrepender‑te‑ás de ambas as coisas.(p. 160)
[9]Vel var der Noget af en Erkjendelsens Sværmer i Socrates [...]; men dette fjernede ham dog ikke fra Livet, tvertimod stod han i den meest levende Berøring med det; men hans Forhold til det var hans reent personlige Forhold til Individer, hans Vexelvirkning med dem fuldbyrdede sig som Ironi. [...] ligesaa stor en Virtuos i den tilfældige Berøring. Han talte lige godt med Feldberedere, Skræddere, Sophister, Statsmænd, Digtere, med Unge og Gamle, talte med dem lige godt om Alt, fordi han overalt fandt en Opgave for sin Ironi).Men uagtet al hans Virtuositet kan det dog godt være hændtes ham, idet han, ikke saa meget, som Cicero mener, hentede Philosophien ned fra Himlen og bragte den ind i Husene.(SKS 1 228)
[10]Der gives i selviske Prætensioner til en Prædiken et Standpunkt, der aldeles ligner Pharisæerens i moralsk H:, da han sagde, jeg takker Dig Gud, at jeg ikke er som andre Msker., et Standpunkt, der troer at komme Guddommen nærmere ved Talent og Virtuositæt i Fremstilling.
[11] Og var han i denne Henseende Virtuos [at bruge hele sin eminente Klogskab for objektivt at parere enhver Berøring, for at fjerne om muligt Alt, enhver Situation, enhver Begivenhed o: D:, der kunde foranledige, at det maatte blive aabenbart, hvorvidt han nu virkelig var den Alvorens Mand, den ophøiede Charakteer som de stille Timer foranledigede En til at respektere ham for].; jeg kunde skrive en heel Bog, og dog maaskee ikke faae dem alle optalte og beskrevne, alle de Former og Midler han i den Henseende raadede over, og altid med afgjort Virtuositet.” And he was a virtuoso in this respect [how to use all his brilliant shrewdness to deflect objectively any contact, to eliminate if possible everything, any situation, any event, etc., that might prompt disclosure of just how much he actually was the man of earnestness, the elevated man of character such as the quiet devotional hours led one respectfully to regard him]. I could write a whole book and yet fail to mention and describe all the modes and means he had at his command, and always with unquestionable virtuosity.” (JP6 489)
[12] In 1848-9, the Bishop’s virtuosity is still labeled ‘a la Goethe” (NB5, SKS 20 385/KJN4 385), and it allows him to ‘give the appearance of plenty’ with little (NB9:58, SKS 21 234/KJN5 244).  Significantly, in 1851, virtuosity is still counted among his talents (NB22:120, SKS 24/JP6 368).
[13]Hvori laae egl. [egentlig] Socrates Ironie? Mon i Udtryk og Vendinger i Talen o: D:[og Deslige]? Nei slige Bagatellerier, maaskee Virtuositet i at snakke ironisk, Sligt constituerer ikke en Socrates. Nei, hans hele Tilværelse er Ironie og var den[.] (NB35:2, SKS 26 363)
[14]…Og det var heri Biskop Mynster praktiserede med Mesterskabets Virtuositet…; Og paa Øienforblindelse var hele Biskop Mynsters Kirke-Styrelse indrettet; hans Virtuositet i Tvetydighed var blevet hans anden Natur. […] I en Række af Aar tog han med en beundringsværdig Virtuositet en Samtid, christeligt, ved Næsen… NB33:33, SKS 26 272.
[15] Bugtalerie bestaaer  jo i, at tale saaledes at det ikke kan bestemmes, hvo den Talende er, saa Talen vel høres, men som havde den intetsteds hjemme, som var der ingen Talende. Ventriloquism is a way of speaking so that it cannot be determined who the speaker is; the words are heard, but as if they were unattached, as if there were no speaker. (JP4 124)
[16]Jeg var den eneste der havde Forudsætninger til at kunne gjøre det med Eftertryk, Forudsætninger: 1) i Retning af Goldschmidt, der havde udødelig gjort mig, og i mig saae sin Beundrings Gjenstand 2) i Retning af at være vittig Forfatter. 3) i Retning af  ikke at have holdt med de Fornemme, eller overhovedet med noget Partie 4) i Retning af personlig Virtuositet til at omgaaes Alle 5) i Retning af et hidtil straalende Renomee, der bogstavelig ikke havde eet eneste Stænk af Critik ell. Deslige 6) i Retning af uegennyttigt at have sat Penge til for at være Forfatter. 7) i Retning af at være ugift, uafhængig o: s: v.” (NB17:13, SKS 23, 172).
[17]Førend jeg rykker frem for sidste Gang var det saa vigtigt, og saa sandt i min Individualitet, endnu engang at lokke Farten, at friste, og saa vidt muligt samtidigt, at give et præsentisk Indtryk af min Differents Virtuositet.
[18]Af en Sanger fordres der først Stemme, saa fordres der Foredrag, hvilket er Enheden af Stemme og Stemning, og noget Andet end Stemmens Bøielighed i Coloraturer og Løb, da det som Mulighed er den gjensidige Commensurabilitet, og som Virkelighed Stemmens og Stemningens Samlyden i Foredraget; endeligen fordres der af den dramatiske Sanger, at Stemningen er den rette i Forhold til Situation og poetisk Individualitet. Naar Sangeren har Stemme og sætter Stemning til, saa er han konstnerisk i Lidenskab; er han tillige Skuespiller, vil han ved Mimik endog kunne omfatte Modsætninger paa een Gang. Jo mere han selv er reflecteret og øvet i at tumle Stemmen paa Stemningens Pianoforte, desto flere Combinationer vil han raade over og saaledes kunne gjøre Componistens Fordringer Fyldest, naturligvis naar Componistens Værk veed at gjøre Fordringer til Sangerens Foredrag, og ikke hører til de ufordragelige og uforedragelige Operaer. Er han mindre reflecteret, vil han i Stemning og Charakter ikke have saa stort Omfang; men Eet bliver der tilbage: al Stemnings universellere Grund, at kunne sætte Phantasi til Stemmen, at kunne synge med Phantasi. Et saadant Foredrag er det, jeg har beundret hos Hr. H. paa det omtalte Punkt.

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