Jorge MIRANDA de ALMEIDA - Hugo PIRES-Jr: "Subjetividade da subjetividade: A propósito da relaçao entre Kierkegaard e Foucault"
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RESUMO Paul Michel Foucault em seus escritos do início dos anos de 1980 até o ano de 1984 apresenta um deslocamento dos seus procedimentos filosóficos em direção às relações entre subjetividade e verdade ou sujeito e verdade sendo esta busca estabelecida sob a noção do cuidado de si mesmo na diferenciação e aproximação com conhecimento de si mesmo. É notável, então, a presença de um salto que vai da problemática anteriormente tratada e que diz respeito à análise das relações entre poder e saber, para a problemática da subjetividade/verdade sendo este um salto qualitativo. Estes movimentos de sentido que é dado às suas epistemes evidenciam uma aproximação da noção de subjetividade discutida e delineada de forma fecunda em SØren Aabyé Kierkegaard que antecipa em quase um século questões que seriam retomadas e aprofundadas pela filosofia e pela psicologia somente em meados do século XX. As questões a respeito do sujeito e sua singularidade tendo a noção do cuidado de si mesmo como balizadora desvela o ser que se constrói na sua subjetividade e interioridade levando à percepção de um deslocamento de Foucault em direção à hermenêutica kierkegaardiana. Este estudo tem o intuito de discutir este deslocamento considerando a noção de subjetividade e os movimentos observados desta categoria em Kierkegaard e em Foucault evidenciando as afinidades encontradas entre o “pensador da existência” e o pensador do “cuidado de si mesmo” deixando visível àquilo que é possível enquanto aproximação e o que só é possível enquanto dissensão. A metodologia empregada nesta busca ateve-se a análise dos conteúdos do Post-scriptum conclusivo e não cientifico às Migalhas filosóficas, publicada por Kierkegaard no ano de 1846, à análise da A hermenêutica do sujeito, do Governo de si e dos outros referentes aos cursos proferidos por Foucault entre os anos de 1981 a 1983 e o Ditos e escritos v, que enfeixam as entrevistas, conferências, artigos do ano de 1984. As obras analisadas deixam visíveis que os movimentos da categoria subjetividade em Foucault demonstram uma aproximação à Kierkegaard o que indica o salto de qualidade da hermenêutica foucaultiana em direção à subjetividade da subjetividade ou a uma subjetividade na existência, no devir, na individualidade que busca no conhecimento de si e na interioridade a singularidade do tornar-se si mesmo.

 

Palavras-chave: Subjetividade; cuidado de si mesmo; conhece-te-a-ti-mesmo; singularidade/ interioridade; ética.

 

 

INTRODUÇÃO

A categoria subjetividade presente em campos de saberes aparentemente distintos sobre o qual se erige o pensamento de Søren Aabyé Kierkegaard e de Paul Michel Foucault evidenciam ondulações que problematizam os significados e às formas pelas quais a filosofia atual trabalha com esta categoria. É importante oferecer ao leitor que a subjetividade é uma boa chave de leitura para indicar as retomadas, no sentido kierkegaardiano de repetição e os deslocamentos de ambos os autores, que ora parecem aproximar-se, ora aproximam-se de forma derradeira e ora não se aproximam. Este estudo privilegia os caminhos trilhados por Foucault a partir das suas obras do inicio dos anos de 1980 até o ano 1984, especialmente em A hermenêutica do sujeito e Ditos e escritos v, que evidenciam os movimentos indicadores de um deslocamento confirmado pelo próprio autor. E como ele mesmo evidencia tratar-se de um “salto” (FOUCAULT, 2012b, p. 258), entre a problematização das relações de poder enquanto práticas coercitivas com a dimensão da subjetividade-verdade a partir da elaboração do cuidado de si enquanto fundamenta uma prática ascética de si mesmo e ao mesmo tempo uma prática ascética do outro.

É sintomático que categorias como “cuidado de si”, “salto”, “deslocamento”, “subjetividade”, tão fortemente utilizadas por Foucault nessas obras, não tenham despertado aos estudiosos foucaultianos sequer uma aproximação com Kierkegaard, que muito utilizou dessas categorias atribuindo a elas novos significados. Torna-se mais surpreendente ainda quando o próprio Foucault pretende deixar a França para ir morar na Dinamarca e passar a ler Kierkegaard (DEFERT; EWALD, 2011, p. 6). Frederic Gross responsável pela edição de A hermenêutica do sujeito foi um dos poucos estudiosos a afirmar que Foucault foi um “grande leitor de Kierkegaard”, ainda que praticamente jamais faça menção a este autor, que, no entanto, teve para ele importância tão secreta quanto decisiva (GROS, 2010, p.23).

O texto problematiza a questão desse deslocamento que se evidencia na análise efetuada do curso de janeiro de 1982 onde chama a atenção para as relações presentes e existentes entre subjetividade e verdade. É preciso avisar ao leitor que a obra mais significativa de Kierkegaard onde aborda exaustivamente a categoria da subjetividade é intitulada Post-scriptum conclusivo não cientifico às Migalhas Filosóficas de 1846. O segundo capítulo da segunda parte tem como titulo exatamente A verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade e o terceiro capítulo é intitulado A subjetividade real, aquela ética; o pensador subjetivo. Compete aos autores dessa comunicação refletir sobre o que Kierkegaard e Foucault compreendem por verdade e subjetividade.

Essa discussão ainda preliminar tem sua sede, assim, na obra Post-scriptum conclusivo e não cientifico às Migalhas filosóficas, publicada por Kierkegaard no ano de 1846 e parte dele em direção às ações maduras de um Foucault que se evidenciam na A hermenêutica do sujeito, no O governo de si e dos outros, cursos proferidos entre os anos de 1981 a 1983 e no Ditos e escritos v, Ética, Sexualidade, Política que enfeixam as entrevistas, conferências, artigos produzidos no ano de 1984 onde transparece a subjetividade como categoria enunciadora, como ato de significação por meio do qual o salto qualitativo se evidencia e seu deslocamento se faz na direção de uma subjetividade da subjetividade ou da subjetividade da existência, do devir, da individualidade, do conhecimento de si mesmo e que busca na interioridade a singularidade do tornar-se si mesmo.

 

SUBJETIVIDADE, INTERIORIDADE E CUIDADO DE SI EM FOUCAULT E KIERKEGAARD

 

Foucault desenvolve um diálogo que pretende desvelar os lugares a respeito do qual as relações entre o sujeito e verdade apresentar-se-ão bem demarcadas na dinâmica entre o cuidado de si e o conhecimento de si. O autor retorna aos gregos para discutir a forma como a questão do sujeito e do seu conhecimento ou do conhecimento do sujeito empreendido por ele mesmo foi gerida em seu movimento e para este mister parte da categoria do cuidado de si mesmo a (epiméleia heautoú) onde observa ser esta uma noção inerente à rica cultura grega que se manifesta na ação do ser que busca ocupar-se, preocupar-se consigo mesmo no sentido do cuidar de si. Essas atividades são designadas como subjetividade, compreendendo-a a partir da ótica, como estamos desenvolvendo nessa comunicação, que é bastante diferente da compreensão usual em filosofia, sobretudo, dos herdeiros da filosofia moderna da subjetividade como sujeito autossuficiente e autorreferente. Aqui, subjetividade é vulnerabilidade, por isso ela precisa ser cuidada, edificada.

Pretendemos demonstrar durante o desenvolvimento do trabalho como as categorias subjetividade, interioridade e edificação em Kierkegaard se aproximam das categorias trabalhadas por Foucault que justifica a subjetividade da subjetividade, isto é, o desenvolvimento da própria subjetividade que transforma o individuo em um si mesmo. Esta relação é enunciada em Kierkegaard a partir da ideia da subjetividade como verdade e como ética ao mesmo tempo em que evidencia caminhos para a construção da subjetividade como sendo a própria verdade, que se edifica a partir da existência do ser que a tudo fundamenta buscando-se na interioridade. O ser se edifica na existência e na busca desta edificação dirige-se ao “si mesmo” para a compreensão da sua singularidade (KIERKEGAARD, 2010). Kierkegaard não aceita a compreensão da subjetividade dominante no círculo filosófico e teológico do seu tempo, pois em última instância, esta era subjetivada na exterioridade do Estado ou da Religião. No fundo, não havia propriamente um si mesmo, apenas um eu. Por isso é importante a distinção que o filósofo estabelece na obra A Doença Mortal (KIERKEGAARD, 1974a) de um eu que se estabelece como relação que se redobra sobre si mesmo, isto é, há uma primeira relação entre o eu e o si mesmo e depois de edificado esse si mesmo, a reduplicação entre o si mesmo e o próximo, o primeiro Tu como designa em As Obras do Amor (KIERKEGAARD, 1974b).

Para auxiliar o leitor a compreender o que Kierkegaard critica na concepção que a filosofia moderna tem de filosofia e a que ele propõe, pensamos que essa citação extraída do Pós-escrito conclusivo irá contribuir.

 

Este pensamento objetivo não tem nenhuma relação com a subjetividade existente, e enquanto a difícil questão sempre permanece, como é que o sujeito existente se introduz nessa objetividade, na qual a subjetividade é a pura subjetividade abstrata (que é, mais uma vez, uma determinação objetiva e não designa algum ser humano existente), é certo que a subjetividade existente se evapora cada vez mais, e, por fim, se é possível para um ser humano tornar-se algo assim, e que tudo isso não seja algo de que se pode, na melhor das hipóteses, ficar conhecendo no máximo pela fantasia; o puro com-saber abstrato a respeito e o conhecimento sobre essa relação pura e entre pensamento e ser, essa pura identidade, sim, essa tautologia, porque aqui com ser não se diz que o pensador é, mas sim, propriamente, apenas que é um pensador (KIERKEGAARD, 2010, p. 325)

 

Ora, uma subjetividade que precisa ser construída não pode ser reduzida a um mero objeto de saber. Essa parece-nos também é a tese de Foucault (2010a), pois o cuidado de si mesmo, o ocupar-se consigo, o preocupar-se consigo, no entendimento entre sujeito e verdade, apresenta sentidos que vão além de “certa forma de atenção” e remetem a uma gama de ideia e de atividades que passam pelo exercício ascético, a uma forma de atividade, a “atos de conhecimento” como a atenção, o olhar, à percepção que se tem de si, o estar atento a si, o voltar o olhar para si, o examinar-se a si mesmo, o refluir sobre si mesmo, retrair ou então restabelecer-se, instalar-se sobre si mesmo como um refugio, uma cidade fortificada, descer ao mais profundo de si mesmo, perpassando por “famílias de expressões” que “concerne a toda uma prática de si”. Foucault remete a questão da edificação e da interioridade onde “descer o mais profundo de si mesmo, instalar-se sobre si mesmo” (p.78) é a questão da edificação em Kierkegaard onde quanto mais você edifica mais você se constrói em profundeza, mais você se eleva.

É notável que Foucault retorne aos gregos quando demarca em Alcebíades um cuidado de si estabelecido em uma “ocasião precisa” onde é chamada a atenção de Alcebíades para a “hóra: o momento da vida, estação de existência em que deve ocupar-se consigo”. E essa “estação da existência [...] é o momento em que o jovem deixa de estar nas mãos dos pedagogos e de ser, ao mesmo tempo, objeto de desejo erótico, momento em que deve ingressar na vida e exercer seu poder, um poder ativo” (p.79). A estação da vida corresponde em Kierkegaard ao momento existencial, a síntese em que o eterno e o temporal se concretizam na decisão da subjetividade singular. As tensões entre o tempo e o eterno só se tornam contemporâneas na decisão do individuo singular, pois mesmo sendo Deus considerado como a fonte que jorra para a vida eterna, ele tem o poder de retrair-se para que o indivíduo singular possa tornar-se mesmo. Até nesse momento Kierkegaard é irônico e estratético, irônico, pois sabe que a síntese não pode ser colocada apenas por si mesmo, estratético porque compreende que para que o si mesmo se efetive autenticamente  precisa reconhecer que precisa atirar-se no poder que o pôs, caso contrário seria uma caricatura de um eu sem sentido, como os vários personagens-pessoas analisadas em suas obras como, D. Juan, Fausto, o Judeu errante, Dona Elvira, Margarida. Em se tratando de Foucault, é pertinente perguntar se o Foucault do início dos anos de 1980, na sua A hermenêutica do sujeito quando discursa a respeito do cuidado de si mesmo o faz com a finalidade de chamar a atenção sobre os gregos apenas e como uma mera reflexão, ou ao fazê-lo toma o conceito para si apropria-se dele e assimila-o passando a ensiná-lo enquanto ele próprio é arremetido mais próximo à hermenêutica kierkegaardiana, pois será assim que se dará a conhecer esse deslocamento em direção à subjetividade da subjetividade, do tornar-se si mesmo, já anunciado em Kierkegaard desde 1846.

Essa problematização é pertinente, pois o próprio Foucault (2012a) assume em entrevista no ano de 1984, que a questão subjetividade/verdade é sua posição reflexiva filosófica desde o início de sua trajetória intelectual, “esse sempre foi, na realidade o meu problema” (p. 258) e o que levou a abordá-la de forma geral nos seus cursos ofertados no Collège de France onde passou a considerar a questão das relações entre sujeito e verdade e a entrada do sujeito nos jogos de verdade, por ele examinados a partir das práticas coercitivas (sistema psiquiátrico e penitenciário) e pela “análise das riquezas, da linguagem e do ser vivo” (em As palavras e as coisas) para o que o autor chama de “uma prática de si”. Esta é a questão em análise, pois são praticas determinantes tanto para a sociedade greco-romana, como para a sociedade atual, expressando-se de forma autônoma e marcante, mas que não apresentou a mesma importância em épocas posteriores quando foi “investidas pelas instituições religiosas, pedagógicas ou do tipo médico psiquiátrica” (p.259) e que perduram até os dias atuais mesmo após as contribuições de Kierkegaard evidenciadas pelo próprio Foucault no seu salto qualitativo ou no seu deslocamento.

Essa comunicação não pretende ser uma resposta conclusiva, seu propósito é o de promover uma discussão inicial sobre a categoria subjetividade presente em Kierkegaard e em Foucault enfatizando os movimentos que indicam as afinidades entre o pensador da existência e o pensador do cuidado de si mesmo, observando na hermenêutica foucaultiana aquilo que indica seu salto de qualidade e o faz deslocar-se da análise a respeito da formação dos saberes e sistemas de poderes em direção à hermenêutica kierkegaardiana da subjetividade, da ética e ao objeto de verdade evidenciando o que é possível enquanto aproximação e o que só é possível enquanto dissensão. Essa pretensão corre muitos riscos, mas o risco é próprio de quem ousa filosofar e não se contenta nas seguranças dos resumos, resenhas e reproduções dos teóricos. É um risco, pois muitos dos principais estudiosos de Foucault têm muita resistência à categoria da subjetividade, pois ainda a vêem com as lentes da subjetividade compreendida por Descartes, Leibniz, Kant e o próprio Hegel e por outro lado, ainda assume a crítica dos teóricos marxistas que enxergam na categoria da subjetividade apenas um pensar burguês e alienado. Nesse sentido é preciosa a contribuição de Franklin Leopoldo e Silva no seu prefácio de A parrhésia em Michel Foucault: um enunciado político e ético, pois dá sustentação ao nosso propósito ao evidenciar que “a presença constante do tema do sujeito é solidária a uma profunda modificação do modo de visar a subjetividade” (SILVA, 2010, p.7) e que essa subjetividade está comprometida com a construção ética que envolve o indivíduo enquanto práticas de si.

 

CompreensÕES da subjetividade em Kierkegaard

 

Kierkegaard (2008) e Foucault (2010a) na relação entre mestre e discípulo conforme desenvolvem respectivamente em Migalhas Filosóficas e na Hermenêutica do sujeito tem compreensões muito próximas em relação a maneira como abordar a subjetividade do educando. Em Kierkegaard (2008) o máximo que o mestre pode ser é a ocasião para que o discípulo possa elaborar ou edificar a si mesmo; Em Foucault (2010a) a posição do mestre como ele mesmo afirma é que ele “cuida do cuidado que aquele que ele guia pode ter de si mesmo” (p.55). Ora, o mestre não cuida do discípulo, pois se assim fosse, ele estaria objetivando o pupilo, pelo contrário, cuida do cuidado. E o que isso quer dizer? Cuidar é amar de forma desinteressada, pois “o cuidado de si, que se forma e só pode formar-se numa referência ao Outro, desconsiderando a interpretação entre Eros e o cuidado de si”. Ora, o amor ao próximo em Kierkegaard não corresponde exatamente a abnegação, ao amor crístico, amor em direção ao tu, pois o eu nada significa se ele não se transforma imediatamente num primeiro tu?

O cuidado de si, da forma tratada por Foucault não se manifesta como uma ação em si mesma, mas como um princípio que se universaliza e se impõe de forma derradeira ao ser e ao mundo e não mais como tratam os gregos, como um princípio que se reserva a aqueles que exerciam o mando, o poder: guerreiros, donos da cidade, governantes, conforme Foucault (2010a, 2010b). O ocupar-se consigo parece surgir então como um princípio universal, que não se resume ao individual, ao retirar-se para o deserto, ao isolar-se em um ascetismo eremítico e narcísico desconsiderando o outro, mas ocupando-se consigo mesmo de forma a elaborar-se, a edificar-se buscando-se na relação e no encontro com o outro. Novamente há ai uma aproximação com o pensamento de Kierkegaard em relação à dinâmica, si mesmo e o outro. Afirma Kierkegaard (2007) que

 

o próximo é o igual. O próximo não é a pessoa amada, pela qual tu tens a predileção da paixão, e nem mesmo teu amigo, por quem tu tens a predileção da paixão. O próximo não é de jeito nenhum, se tu és alguém culto, a pessoa culta [...] Não, amar o próximo é a igualdade [...] O próximo é todo e qualquer homem, pois pelas diferenças ele não é teu próximo, nem mesmo pela igualdade contigo no interior da diferença em relação aos outros homens. Pela igualdade contigo, diante de Deus ele é teu próximo, mas esta igualdade absolutamente todo homem tem, e a tem incondicionalmente (p. 81)

 

O cuidado de si mesmo evoca então a busca da condição ética do ser e tem início, como em Kierkegaard (2010) não pela imposição de regras e de leis ou de poderes constituídos pelas instituições, mas pela escolha do ser e esta se dá na primeira pessoa. Por ter essa compreensão, o filósofo dinamarquês afirma que a verdadeira subjetividade é ética, como indica o terceiro capítulo da segunda parte do PostScriptum intitulada A subjetividade real, a [subjetividade] ética; o pensador subjetivo. Ora, o que exatamente quer dizer a subjetividade real, a subjetividade ética. Existe subjetividade que não seja real? Nas obras de Kierkegaard existem vários personagens-pessoas que encarnam uma subjetividade irreal, aquelas que fingem viver ou vivem projetando sua vida em outro ser como, por exemplo, Dona Elvira em que projeta seu ser em Don Giovanni até afirmar quando se sente abandonada “--- Que faço agora da minha vida, eu, eu, eu que nunca fui eu mesma?” Ou então ”--- Estou perdida, é somente assim que posso salvaguardar a mim mesma... Mim mesma... Que coisa é este meu moi”? (KIERKEGAARD, 2001. V.ii, p. 81-98)

E, no entanto este princípio para os gregos nunca esteve relacionado a uma lei universal e nem tampouco era considerado válido a todos os indivíduos, pois evoca um modo de vida que leva necessariamente a uma separação entre os que a escolheram e os que não a escolheram o que leva a crer que o ocupar-se consigo mesmo é sempre e da mesma forma nos dias atuais um privilegio das elites. Como sinaliza Foucault (2010a) “na cultura grega, helenística e romana, o cuidado de si sempre tomou forma em práticas, em instituições, em grupos, que eram perfeitamente distintos entre si, frequentemente fechados uns aos outros e, na maioria das vezes implicando uma relação de exclusão dos demais. O cuidado de si era ligado a práticas ou organizações de confraria, de fraternidade, de escola, de seita” (p. 102). Mas há de considerar que o cuidado de si sempre implicou em uma escolha de um modo de vida. Essas escolhas também podem ser relacionadas num estudo posterior sobre os dois pensadores com as esferas da existência desenvolvidas por Kierkegaard.

Esta noção, no entanto, é desprezada pela filosofia que não mostra interesse em evocá-la desde o período clássico até os dias atuais colocando a discussão sobre o sujeito e o conhecimento de si na formula distinta e reconhecida por todos considerados sob o preceito délfico do conhece-te-a-ti-mesmo (o gnôthi seautó). E, no entanto, o cuidado de si mesmo é certamente a questão sob a qual se agita e se fundamenta a arquitetura da hermenêutica foucaultiana do final dos anos de 1980 em diante, pois é ela que o leva em direção ao sujeito/subjetividade que se busca eticamente no conhecimento dele mesmo e de suas relações buscando este estádio por meio das escolhas individuais. O Cuidado de si é menosprezado pela filosofia porque revela um homem quebrado no sentido utilizado por Emil Cioran, um homem inconcluso e por isso, não atende a exigência de um sujeito de conhecimento puro e autossuficiente como gostam de afirmar os filósofos profissionais.

Como dito acima é no Post-Scriptum que Kierkegaard elabora a teoria da subjetividade especialmente na Segunda Parte intitulada O problema subjetivo. A relação do sujeito com a verdade do cristianismo ou o Tornar-se Cristão. No capítulo dois dessa primeira seção intitulado: Teses possíveis e reais de Lessing, cujo subcapítulos são intitulados:

 

1 O pensador subjetivo existente está atento à dialética da comunicação. 2 O pensador subjetivo existente, em sua relação existencial com a verdade, é tão negativo quanto positivo, tem tanto de cômico quanto essencialmente tem de pathos, e está continuamente em processo de vir-a-ser, i. é, está esforçando-se. 3 Lessing disse que verdades históricas contingentes nunca podem se tornar uma demonstração de verdades racionais eternas; e também que a transição, pela qual se quer construir sobre uma informação histórica uma verdade eterna, é um salto. 4 Lessing disse: Se Deus me oferecesse, fechada em Sua mão direita, toda verdade, e em Sua esquerda o impulso único, sempre animado, para a verdade, embora com o acréscimo de me enganar sempre e eternamente, e me dissesse: Escolhe! – eu me prostraria com humildade ante Sua mão esquerda, e diria: Pai, dá-me! pois a verdade pura é de fato só para Ti e mais ninguém!

 

Porém o que é importante para essa comunicação está posto na Seção 2, no capítulo intitulado,

 

O problema subjetivo, ou como tem que ser a subjetividade, para que o problema possa se apresentar a ela. Capitulo 1 – O tornar-se subjetivo: Como a ética teria de julgar se o se tornar subjetivo não fosse a mais alta tarefa posta [sat] a um ser humano; o que teria de ser desconsiderado na sua compreensão mais precisa; exemplos de um pensamento orientado ao tornar-se subjetivo e o Capítulo 2 – A verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade

 

Apresentado o esquema da parte da obra que interessa demais a essa comunicação, é preciso entender agora e apresentar ao leitor o que significa tornar-se subjetivo. Tornar-se subjetivo para ser capaz de que? Tornar-se aqui equivale a uma vontade de poder? Tornar-se implica uma autoafirmação de si mesmo e independência do poder que o pôs? Não! Para Kierkegaard (2010) tornar-se é realizar um movimento mediante a liberdade enredada que o Poder que o pôs lhe concedeu, isto é, a capacidade de tornar-se um si mesmo ou ser apenas mais uma repetição de um eterno zero, como demonstrado em A Doença Mortal (KIERKEGAARD, 1974a).

Tornar-se subjetivo aproxima-se muito da categoria do cuidado de si mesmo utilizado por Foucault, isto é, implica em edificar-se. Para que essa atitude tenha êxito é preciso entrar em si mesmo, ser educado na escola da adversidade como adverte Kierkegaard (1974b) e cultivar no temor e no tremor todas as dificuldades inerentes ao ato de existir para tornar-se o eleito, isto é, o homem capaz de assumir gratuitamente todo o esforço e toda a responsabilidade para com o projeto maior.

A subjetividade em Kierkegaard não é demonstrada como se faz com uma proposição filosófica, pelo contrário, ela é evocada a partir de determinados cenários, por isso, mediante a leitura que se faz do Juiz Guilherme, de Dona Elvira, de Sócrates, de Jó, de Abraão, do Judeu errante e também dos próprios pseudônimos como Johannes Clímacus, Constantin Constantius, Anti-Clímacus, Vigilius Haufniensis, é possível compreender o que o filósofo dinamarquês pretende com subjetividade. O próprio problema colocado por Kierkegaard (1974b) em Temor e Tremor sobre a suspensão teleológica da moralidade é um grande esforço em assumir que a subjetividade está acima do exterior (Lei, Estado, Religião), pois se a subjetividade obedecesse ao imperativo do Estado, Deus seria relativizado e o indivíduo reduzido apenas a um número a mais, isto é, capaz de realizar exatamente as mesmas ações destinadas a todos os homens e não a cada homem em particular.

 

Conclusão

 

Para fins de delimitação de uma comunicação oferecemos indicações das aproximações entre Kierkegaard e Foucault a partir da relação entre cuidado de si e subjetividade e desta da noção do cuidado de si, como ato de interiorização seguido das questões a respeito dos modos de existência. Às noções enunciadas, discutidas á luz da hermenêutica kierkegaardiana e foucaultiana, serão também consideradas as contribuições de Guatarri&Rolnik (1986) especificamente quando discute a noção de subjetividade inserindo a categoria de subjetivação como sendo os modos de produção da subjetividade e que distingue o caráter positivo e negativo da subjetivação sendo o negativo as ações que levam a uniformidade e uniformização que induzirão ao pensamento homogêneo que é a tendência observada no sistema capitalístico que tenta tornar cada um de nós um átomo, um fragmento apenas. A subjetivação do sujeito, para Guatarri é construída por instituições existentes e dentre elas a igreja, a universidade e a própria ética que força o ser em direção a determinados padrões que uma vez assumidos transformam-se em subjetivação sendo que a construção da subjetividade do ser se dá quando se transgride esta subjetivação. O ato de transgredir é então o salto, que é qualitativo conforme Kierkegaard (2010), pois intencional onde o ser sabe o que quer e corre o risco desse querer sem se preocupar com a prova cientifica ou formal, esta é a qualidade.

 

reerências

 

DEFERT, Daniel; EWALD, François. Cronologia. In: FOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. 3ª ed. São Paulo: Forense, 2011. Ditos e escritos I.

 

FOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. 3ª ed. São Paulo: Forense, 2011. Ditos e Escritos I

 

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: cursos dados no collège de France (1981-1982). São Paulo: mfMartins fontes, 2010a.

 

FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros: cursos dados no collège de France (1982-1983). São Paulo: mfMartins fontes, 2010b

 

FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. 3ª ed. São Paulo: Forense, 2012a. Ditos e Escritos V.

 

FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade - 1984. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. 3ª ed. São Paulo: Forense, 2012b. Ditos e Escritos V.

 

GUATARRI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

 

GROS, Frédéric. Notas 46: aula do dia 6 de janeiro de 1982. In: FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: cursos dados no collège de France (1981-1982). São Paulo: mfMartins Fontes, 2010.

 

KIERKEGAARD, SØren Aabye. Post-scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca: Sígueme, 2010.

 

KIERKEGAARD, SØren Aabye. As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos. 2ª ed. Bragança Paulista: EUSF/Petrópolis: Vozes, 2007.

 

KIERKEGAARD, SØren Aabye. O desespero humano (Doença até a morte). São Paulo: Abril Cultural, 1974a. Os pensadores XXXI.

 

KIERKEGAARD, SØren Aabye. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

 

KIERKEGAARD, SØren Aabye. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1974b. Os pensadores XXXI.

 

SILVA, Franklin Leopoldo e. Prefácio. In: WELLAUSEN, Saly. A parrhésia em Michel Foucault: um enunciado político e ético. São Paulo: LiberArs, 2011

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