Jorge MIRANDA DE ALMEIDA: "Subjetividade e ética em Kierkegaard"
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Introdução

 

O ponto crítico da obra de Kierkegaard está relacionado com o problema do tornar-se cristão como é exposto em Ponto de vista de minha obra (atividade) de escritor[1]e desenvolvido amplamente no Pós-escrito, obra na qual Kierkegaard expõe uma teoria da subjetividade na qual constam as categorias existenciais em que cada singular tem a tarefa de edificar a si mesmo na tensa e conflituosa relação entre interioridade e o gênio histórico-mundial (1993, p. 283)[2]. Mas, o que significa a subjetividade em Kierkegaard? Toda subjetividade é verdadeira? A subjetividade de Dona Elvira ou a de Margarida descrita em Enten-eller é verdadeiramente uma subjetividade? A subjetividade do jovem poeta criado idealmente como um experimento por Constantin Constantius em A Repetição é verdadeira? Se a subjetividade é verdadeira porque Kierkegaard insiste tanto na retomada da tese que a subjetividade é a verdade que ocupa a segunda parte do Pós-escrito a partir da afirmação que o tornar-se subjetivo é a mais elevada tarefa que é posta ao existente? (1993, p. 346) E a outra tese que sustenta essa comunicação, “O ético é e sempre será a mais alta tarefa atribuída a qualquer ser humano”. (1993, p. 339) Essas duas teses são sintetizadas no capítulo terceiro da segunda parte do Pós-escrito intitulado A subjetividade real, aquela ética; o pensador subjetivo.

Tornar-se implica assumir que a subjetividade não é construída de uma vez ou sendo construída permanece a mesma. Tornar-se como descrito na Doença Mortal é um movimento sem deslocação. Tornar-se si mesmo como tarefa ética é repetido 71 vezes na obra Pós-escrito e em muitas o reforço como sendo esta a tarefa mais elevada. Considerando que Kierkegaard tinha domínio do que estava escrevendo e que tinha um propósito em sua obra, qual a justificativa para a repetição em torno da subjetividade e da segunda ética? Penso que um dos motivos que proporcionou a Kierkegaard uma atenção especial à questão da subjetividade foi tentar compreender como em seu e em nosso século, fomos capazes de nos deixarmos enfeitiçar e enfeitiçados permitir a nossa própria “extinção pela qual a vida real se torna uma existência de sombras”. (1993, p. 449)

O percurso principal dessa comunicação é analisar a cópula subjetividade e ética no Pós-escrito utilizando as personagens de D. Elvira, Margarida, Fausto, O Juiz Guilherme e Cordélia como vidas sombrias e cada uma desprovida de subjetividade como singularidade. Se a tarefa for bem realizada, o leitor terá a alternativa de constatar que a subjetividade verdadeira é aquela em que o indivíduo singular soube transformar o dom (a vida) em tarefa (existência) e na relação consigo mesmo, com o autor que o pôs e com o próximo, primeiro Tu da relação conseguiu mediante a interiorização edificar-se como sendo este existente, este indivíduo singular.

 

1 - Os modos de subjetividade na obra de Kierkegaard

            No terceiro parágrafo do terceiro capítulo da segunda parte da obra Pós-escrito conclusivo intitulado A contemporaneidade dos momentos particulares da subjetividade na subjetividade existente; contemporaneidade como oposição ao processo especulativo, numa nota de rodapé Kierkegaard estabelece que o sujeito da forma como a filosofia tem se debruçado não é capaz de tornar-se a subjetividade, porque, abstrai o tornar-se que é realizado pelo existente mediante o movimento da decisão e da repetição, (1993, p. 430) considerando que a existência é o movimento que realiza a passagem da possibilidade à liberdade na realidade efetiva mediante o esforço designado como ser-capaz-de. O que isto quer dizer? Que o singular não é um si mesmo, ele tem a disposição de tornar-se um si mesmo.

Kierkegaard questiona os filósofos por não atentarem para a existência real e permanecerem no campo da representação e da universalização conceitual da realidade e da pessoa. Ironicamente ele questiona: “Qual é este mesmo sujeito? Decerto não é um homem individual existente, mas sim a definição abstrata do homem em si”. (1993, p. 448). Ora, se a subjetividade é um movimento que o indivíduo realiza para tornar-se o que estava destinado a concretizar-se, o sujeito da filosofia não tem em si o devir, pois, ele é um homem em si, faltando a condição fundamental para subjetivar-se e tornar-se um si mesmo: a relação.

            Margarida por exemplo não se relaciona com Fausto. Ela se anula para obter nele a sua força vital, como Kierkegaard descreve mediante a personagem em questão: “eu, que propriamente não sou outra coisa senão a recordação dele” (1990, v. II, p. 109) e “O que eu era? Nada! Argila em suas mãos [...] o que eu era? Uma pobre planta e ele me cultivou, foi para mim tudo, o meu Deus, o princípio do meu pensamento, o alimento da minha alma” (1990, v. II, p. 190). Assumindo na projeção que faz de si ao amado a anulação de si mesma, ela expressa:

posso esquecê-lo? Mas poderia o córrego, por quanto longe chegue a percorrer, esquecer a sua fonte, esquecer a sua nascente, separar-se? Poderia a flecha, por quanto rápido possa voar esquecer a corda do arco? Poderia a gota da chuva, por quanto longa seja a sua queda, esquecer o céu de onde cai? Certamente deverei dissolver-me! Posso tornar uma outra, poderei renascer de uma mãe que não é a minha mãe? Poderei esquecê-lo? Agora então deverei, por certo deixar de ser (KIERKEGAARD, 1990, v. II, p. 109)

 

Nessa personagem há ausência de condições fundamentais que qualificam a subjetividade real como por exemplo: a interioridade que faz com que o ser humano se torne um humano integral existente (1993, p. 449); verdade existencial, pois ao colocar o seu ser fora de si, isto é, em Fausto, ela não ousa concretizar-se a si mesmo como subjetividade e como verdade, pois a tese cantada por Kierkegaard é que “a subjetividade é a verdade”  (1993, p. 448)

            Dona Elvira também é um ser perdido após a partida de Don Giovanni, como ela mesma expressa “estou perdida [...] mim mesma....mim mesma...o que é exatamente esse mim mesmo?” (1990, v. II, p. 96) No amor e no ódio que sente por seu amado ela se alimenta e se consome. Ela está nos cumes do desespero e por isso não é capaz de existir no interior da realidade efetiva pois “a única realidade que há para um existente é sua própria [realidade] ética; sobre todas as outras realidades, ele só possui um saber, mas o verdadeiro saber é um transpor para a possibilidade” (1993, p. 432), isto porque conforme desenvolvimento no capítulo terceiro da segunda parte “a subjetividade real não é a que [apenas] sabe, pois, com o saber, ela está no terreno da possibilidade, mas sim a subjetividade eticamente existente. Um pensador abstrato decerto está aí, mas o fato de ele existir é antes uma espécie de sátira sobre ele”. (1993, p. 432). Qual seria a atitude ética de D. Elvira e que faria com que ela construísse a própria subjetividade a partir do princípio de contradição em que o si próprio não cria a si mesmo quando escolhe a si mesmo como é analisado em Enten-eller na parte denominada O equilíbrio entre o estético e o ético na elaboração da personalidade? (1989, v, V, p. 95)

O Juiz Wilhelm constata a decadência e a tristeza de uma época, que muito bem pode ser atualizada para a nossa: “...e é esta a tristeza –da nossa época- observando a vida dos seres humanos, quando muitos transcorrem a sua vida em contente perdição; eles se encaminham ao longo do arco que conduz a velhice...vivendo fora de si mesmo, desaparecendo como sombras” (1989, v. V, p. 34). Ele mesmo é um representante da rotina, do comodismo e da ausência da vontade, esse agente dialético que determina toda a natureza interior do homem como destaca Anti-Climacus em A Doença Mortal.

            Cordélia é outro experimento interessante para estudar o problema da subjetividade em Kierkegaard. Johannes a seduz. Ela se anula diante do seu sedutor e afirma: “meu enganador, meu inimigo, autor do meu infortúnio, túmulo da minha alegria, abismo da minha infelicidade” (1974a, p. 152). Observe, caro leitor a diferença entre a anulação de Cordélia com a posição sugerida por Anti-Climacus como condição para constituir-se subjetivamente e não anular-se na multidão, na generalidade da pura humanidade. A tarefa proposta a cada homem é a de ousar ser um indivíduo, não um indivíduo a mais na espécie, mas “este que somos, só face a Deus, isolado na imensidão do seu esforço e da sua responsabilidade” (1974b, p. 337) e orientando-se para si próprio, querendo tornar-se um si mesmo, aceita que não pode ser autossuficiente ou autorreferente porque tem em si a liberdade enredada, dom que se recebe como doação de um Deus que cria e se retira para que a criatura torne-se construtor de si mesmo.

A elasticidade da criação, o retrair-se de Deus para que o indivíduo possa adquirir a si mesmo e construir sua própria subjetividade é proposta que se localiza no Diário, em As Obras do Amor e no Pós-escrito. Pode ser apreciado assim: O retrair-se de Deus para que o homem possa acontecer, é a garantia da subjetividade de Deus e da subjetividade da pessoa humana. Em uma passagem notável do Diário:  

A coisa mais elevada que se pode fazer por um homem é torná-lo livre. Mas, para poder fazê-lo é necessária a onipotência. Isto parece estranho porque a onipotência deveria tornar dependente. Mas se se quer verdadeiramente conceber a onipotência, se verá que ela comporta precisamente a determinação de poder retomar-se (ou retrair-se) em si mesmo em sua manifestação de onipotência, de forma que por isto mesmo a coisa criada, possa por via da onipotência, ser independente (1980, VII1 A 181).

E em As Obras do Amor  se repete o jogo entre o dom e a tarefa, entre a liberdade pura de Deus e a liberdade enredada do singular, entre o que é dado e como essa oferta se transforma em conquista. Acentua Kierkegaard:

Ter caráter individual é crer no caráter individual de cada um dos outros, pois o caráter individual não é coisa minha; é um dom pelo qual Deus me dá o ser, e ele o dá aliás a todos, e a todos ele dá o ser. Tal é a insondável fonte de bondade que jorra da bondade de Deus, que Ele, o Todo Poderoso, dá de tal maneira que o que recebe, recebe seu caráter particular, de modo que a criatura, mesmo sendo tirada do nada e não sendo nada, não paira diante d’Ele como nada, mas adquire seu caráter próprio. (2005, p. 306)

 

2 - As disposições do tornar-se ao ser-capaz-de

 

As disposições colocadas nesta perspectiva caminham numa dimensão que considero capaz de contribuir para uma possibilidade entre tantas que oferecem as ondulações do pensamento kierkegaardiano no que diz respeito a estrutura da subjetividade e de como esta se relaciona, quando não é ela mesma a singularidade. As disposições vão do tornar-se até o ser-capaz-de como é desenvolvido em O Conceito de Angústia de 1844 ou o caminho é do ser-capaz-de até o tornar-se cristão? O movimento do tornar-se implica um deslocamento radical em si mesmo que sugere um perder a si mesmo na perspectiva da finitude para retomar a si mesmo na infinitude e transformar-se por decisão subjetiva na pessoa singular. Nesse contexto tem-se pelo menos três tonalidades. Na primeira, não há diferença entre tornar-se e ser-capaz-de; na segunda, o acento está no movimento do tornar-se e na terceira a ênfase está no ser-capaz-de. Trata-se de um jogo de possibilidades em que o tremendo esforço e a árdua responsabilidade extrapolam as esferas do estético e do ético (geral). Dessa forma, ou a subjetividade recebendo a possibilidade de efetivar-se a si mesma enquanto poder de autodeterminar-se realiza o projeto (a tarefa) e essa subjetividade singulariza-se ou o tornar-se a si mesmo mediante o esforço realizado (ser-capaz-de) para realizar o salto como fato absoluto em que o tempo e a eternidade se tocam no instante existencial da decisão, do risco e do salto.

O projeto kierkegaardiano parece caminhar na direção que o problema do tornar-se tem desdobramentos que o estético e o ético não alcançam. A força dos pseudônimos e dos personagens ilustrados em todo o corpus reside na impossibilidade de conseguir paz e repouso na finitude, por si só, numa perspectiva de autossuficiência e auto referência. Se há uma intencionalidade em toda a sua produção e o próprio Kierkegaard afirma essa tese, e se é possível levar a sério qualquer afirmação que sai da boca desse mestre da ironia, é sensato ponderar que enquanto na produção pseudonímica o foco é a subjetividade e sua várias possibilidades de efetivar-se; na produção direta a ênfase é a singularidade, a pessoa do indivíduo singular. Subjetividade e singularidade se equivalem? Podem ser tomadas como sinônimos? Qual é a relação entre subjetividade e ética e singularidade e segunda ética?  Essas questões podem ser discutidas no interior da afirmação de que “a tarefa consiste em converter a repetição em algo de interior, na tarefa da própria liberdade” (2010, p. 19, nota 35). Ora, a conversão ao interior, conversão para o interior, conversão no interior é propriamente a tese discutida na obra Pós-escrito.

            A segunda parte do Pós-escrito é intitulada O problema subjetivo. A relação do sujeito com a verdade do cristianismo, ou o tornar-se cristão; a segunda seção trata precisamente do problema subjetivo, ou como tem que ser a subjetividade, para que o problema possa se apresentar a ela. Nessa seção interessa fundamentalmente os três capítulos que são apresentados como: capítulo 1 – o tornar-se subjetivo: como a ética teria de julgar se o se tornar subjetivo não fosse a mais alta tarefa posta a um ser humano; o que teria de ser desconsiderado na sua compreensão mais precisa; exemplos de um pensamento orientado ao tornar-se subjetivo e capítulo 2 – a verdade subjetiva, a interioridade; a verdade é a subjetividade e capítulo 3 - A subjetividade real, a [subjetividade] ética; o pensador subjetivo.

            No percurso da comunicação indireta Kierkegaard não denomina subjetividade como singularidade. Na obra em questão, o movimento é para tornar-se subjetividade e a primeira ética está encalhada na idealidade do universal e do geral e nada pode contribuir para a decisão que o pensador subjetivo precisa realizar se se quer realmente levar a sério a tarefa de edificar-se a si mesmo. Decididamente não é um empreendimento fácil que se realiza mediante a escolha entre tomar cerveja ou vinho, mas entre viver na temporalidade enquanto temporalidade ou realizar na temporalidade a dimensão da eternidade o que se realiza mediante o salto qualitativo e aqui a escolha não é importante, visto que ainda é uma categoria estética ou no máximo uma categoria da primeira ética que vive no conflito entre casar ou não casar.

            Logo no título no primeiro capítulo da segunda seção está estampada a questão: ‘que juízo faria a ética se o tornar subjetivo não fosse a mais alta tarefa posta a um ser humano? As ondulações parecem indicar que é preciso muita elasticidade para tornar-se a subjetividade verdadeira e real que se realiza como sendo a subjetividade ética. Evidentemente o ouvinte já diagnosticou que não se trata da ética que é colocada em xeque em Temor e Tremor com a suspensão do valor universal estabelecida por Johannes de Silentio. Trata-se daquela nova ciência que Haufniensis propõe em O conceito de angústia como condição para que o si mesmo efetive a si mesmo na elasticidade que precisa acontecer entre tornar-se a si mesmo enquanto decisão subjetiva e aceitar que não pode tornar-se exclusivamente um si mesmo pois o si mesmo é oferecido como dom, mas um oferecimento que precisa ser adquirido na paciência e no risco. É de supor que o poder que o pôs gosta muito de brincar e aquele que recebe esse dom precisa ser educado na escola da adversidade e da ironia para assumir que é nessa brincadeira de gente grande que perde-se a si mesmo ou adquire-se a si mesmo.

O movimento da liberdade de Deus e a liberdade do homem é a condição absoluta para o concretizar da possibilidade do existir. Kierkegaard condena a religião “A” por conceber o existir e a própria existência singular de forma abstrata e irreal. A existência é concebida no “interior da minha consciência eterna” mas esta concepção não é real: a existência é reduzida a um momento do pensamento, a uma abstração especulativa em que “a existência é dissimulada, onde somente o puro ser é” (1993, p. 578). Nesse sentido, vale para a religião o que vale para a filosofia de sistema, não se aborda a existência enquanto existência contraditória, fragmentada, angustiada, latente, mas como uma representação da existência ideal, logo, como não existência, pois existe um mar de diferença entre representar e existir, entre conceituar a si mesmo, isto é, o si mesmo está fora de si e o tornar-se si mesmo em uma tensão-conflitual que beira o abismo do desespero, mas é preciso força e consistência para não despencar quando se está de frente com o fabuloso universo do prazer estético.

Tornar-se um homem ético implica realizar por e em si mesmo “uma metamorfose da alma” porque somente a ética é desejo do eterno, mas não por isto, as leis da ética são eternas, uma vez que o próprio eterno se relaciona com o sujeito da ética como o não-eterno. Johannes Climacus é mais contundente: “a ética é a morada do eterno”. Diferentemente da Ética-primeira que utilizava um conceito ou arquétipo de um deus para legitimar seus valores e por isto reduzia a transcendência à imanência; a segunda-ética não nega a transcendência; aceita-a como ponto de chegada e não como ponto de partida e aqui reside toda a diferença do mundo.

Kierkegaard no Pós-escrito expõe a importância e o alcance da segunda-ética: “o homem não compreende que entre ele e Deus não existe nada senão a esfera ética” (1993, p.330); “o homem que não vê a ética, não vê nem mesmo Deus”; “somente na ética tem imortalidade e vida eterna” e finalmente: “...no momento em que a ética é balizada sobre a individualidade e, é calculada segundo o grau em que cada indivíduo pode própria e essencialmente concebê-la em si mesmo, neste momento, ela consiste na consciência que ele tem de Deus” (1993, p.341).

            O tornar-se subjetivo não é uma tarefa que compete ao poder que o pôs e também não é da esfera da objetividade (sistema, igreja, partido político, laços familiares). A tarefa é singular. Para que ela possa ser concretizada, torna-se condição basilar frequentar a escola da interioridade. Categoria por demais ambivalente e carregada de armadilhas também, pois pode significar tantas coisas no pensamento de Kierkegaard. Mas, dentre tantas variações da interioridade como alma, verdade, subjetividade, ética, é preciso um estudo que este espaço não permite e que o autor também não tem condições de empreender.

Repetindo: a subjetividade verdadeira e real é a subjetividade ética conforme indica o título do terceiro capítulo da segunda parte da referida obra. A resposta a Kant a partir do exercício que este trabalho realiza é: o homem deve constituir-se na própria condição e fundamentação da ética, como sustenta Jean Wahl, mesmo em meio a crises, saltos, incertezas, riscos[3], pois como desenvolve o autor de As Obras do Amor não pode haver intervalo entre o valor e a ação na realidade efetiva da vida, constituindo a decisão do singular a própria realização do ato ético.

Ao estabelecer a subjetividade como interioridade, Kierkegaard atribui um novo significado, pois, rompe com a subjetividade como identidade autossuficiente e egocêntrica e propõe a singularidade fundada na relação, logo, na diferença, o que vai possibilitar a efetiva alteridade. Se para a tradição filosófica a subjetividade é entendida como um eu=consciência, agora, ela é tornar-se si mesmo, o que só será concretizado na relação com um tu. De outra forma, enquanto a identidade basta a si mesmo, a singularidade é edificada a partir de um outro, melhor, de um duplo movimento do outro Deus e do outro como o próximo, afinal de contas, o eu nada significa se ele não se transforma em um Tu.

A distinção entre primeira ética e segunda ética é estabelecida em O Conceito de angústia. A ética primeira e por demais idealizada e o indivíduo singular não está em grau de concretizá-la, a segunda ética parte da realidade efetiva. A ética primeira contribui para a perda total enquanto disciplinadora que não contribui para a edificação do tornar-se aquele indivíduo singular. Na distinção entre o que denomina e diferencias as duas éticas, é colocada uma questão que tem norteado os meus estudos sobre ética na perspectiva de Kierkegaard que aparece em uma nota de rodapé da obra redigida por Haufniensis, a saber: ou bem toda a existência está acabada na exigência ética, ou então a condição é encontrada, e a vida e a existência recomeça do início, não por uma continuidade imanente com o anterior, o que seria uma contradição, mas por força de uma transcendência que separa da primeira existência a repetição por um abismo. Tem-se uma bifurcação: ou a exigência ética encalha a existência ou a condição para a existência é encontrada na exigência ética. Se permanecer na primeira condição, vive-se vegetativamente, sensitivamente, mas não existe, porque não foi capaz de realizar a transposição pela qual se perde a finitude para retomá-la na infinitude como é evidenciada no primeiro capítulo da segunda parte de As Obras do Amor de 1847, intitulado O amor edifica em que o autor estabelece que “um mundo separa esses dois homens: um deles operou a passagem ao espírito ou se deixou transpor, enquanto o segundo ficou aquém” (2005, p. 2240).

Então, penso que o percurso do filósofo dinamarquês tem a possibilidade de ser abordado numa perspectiva ética. Ironicamente ele não escreveu uma obra que sustentasse essa tese. Ainda é comum encontrar em artigos, dissertações, conferências a afirmação de que a ética é apenas um estádio entre o estético e o religioso, embora em mais de uma obra Kierkegaard tenha escrito que os estádios, modos ou esferas da existência seja apenas uma forma propedêutica de abordar as possibilidades de concretizar a tarefa de existir ou de viver. O Pós-escrito coloca o problema que será exemplificado em As Obras do Amor com a exigência da nova ética, pois “Quando, pelo contrário, se deve amar o próximo, a tarefa existe, a tarefa ética, a qual por sua vez é a fonte original de todas as tarefas. Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético” (2005, p. 70).

           

3  Subjetividade e assimetria ética em Kierkegaard

 

            Em primeiro lugar, é preciso estabelecer a distinção entre ética e segunda ética, pois a assimetria penso ser possível apenas na dinâmica da segunda-ética. Ela é efetuada em O Conceito de angústia e estabelece que a primeira ética é

 

[...] ainda é uma ciência ideal, não somente no sentido em que todas as ciências o são. Ela quer introduzir a idealidade na realidade efetiva; mas seu movimento não consiste, inversamente, em elevar a realidade à idealidade. A ética mostra a idealidade como tarefa, e pressupõe que o homem esteja de posse das condições. Com isso, a ética desenvolve uma contradição, justamente ao tornar nítidas a dificuldade e a impossibilidade. Vale para a ética o que se diz da Lei, que é uma disciplinadora que, ao exigir, com sua exigência apenas julga, nada cria. Só a ética grega constituía uma exceção, e isso porque ela não era uma ética no sentido mais rigoroso, mas conservava um momento estético (2010, p. 19).

 

Então, torna-se importante para o prosseguimento da comunicação apresentar ao ouvinte/leitor a análise da compreensão da estrutura da subjetividade como condição para a segunda ética no movimento entre o Pós-escrito e As Obras do Amor. As teses que apresento são importantes para fundamentar essa concepção. A primeira: O amor é uma determinação da subjetividade (1993, p. 327). A segunda: a ação ética só pode ser realizada no interior do amor, mais precisamente “no amor da verdade” (2005, p. 402) logo, se a subjetividade é a verdade, se o amor de verdade é a verdade, então, aquele que apropriou-se da verdade, alcançou o significado do profundo e está pronto para realizar o salto, esta subjetividade tornou-se o indivíduo singular. O homem ético é “aquele que ama sacrificando-se, renunciando sem reservas a tudo” (2005, p. 302) O homem ético “nada entende das exigências do direito estrito ou da justiça, nem mesmo da simples equidade” (2005, p. 303) simplesmente porque a ética começa exatamente onde termina o âmbito do legal.

A assimetria do amor como ética é definido como interioridade que é sinônimo de subjetividade, por isso, somente quem edificou-se a si mesmo na interioridade é capaz de constituir-se em maturidade e capaz de abnegar-se de si como doação do excesso de si, ou do transbordamento de si que foi construído na interioridade. Por isso Kierkegaard afirma:

 

A interioridade exigida é aqui a da abnegação ou renúncia de si, que não se define mais proximamente em relação com a noção do amor da pessoa amada (do objeto) mas sim em relação com auxiliar a pessoa amada a amar a Deus. Daí segue que a relação de amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido. A interioridade do amor deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa 2005, p. 156)

 

 

Como entender que o fundamento do si mesmo não se encontra em seu interior, mas na abertura e na generosidade do existir para o próximo, que denomino subjetividade ética, enquanto ação capaz de compreender que “o eu nada tem a significar se ele não se torna o tu”? A alteridade é, então, uma obra de amor. É sinônimo de relação e, ao mesmo tempo, se constitui em condição da ética da alteridade, porque, ao estabelecer o compromisso de construir autenticamente a existência, esta só se concretiza a partir da relação que se reduplica a partir de si mesmo. A alteridade promove a igualdade na diferença, sem esta força vital o eu não existe, porque a alteridade institui a responsabilidade da dialética da alma que, por sua vez, é a garantia de uma consciência comprometida e não uma consciência meramente especulativa.

O que pretendo é demonstrar a força e consistência da tese a subjetividade é ética, ao sustentar que a ética é a chave[4] que possibilita entender a polissemia dos textos e as vozes kierkegaardianas. Já foi salientado, mas é importante repetir que Kierkegaard no Pós-escrito adverte que “a única realidade que existe para um existente é a sua própria realidade ética, no confronto com outras realidades ele tem apenas uma relação de conhecimento, mas o verdadeiro e próprio saber é uma transposição da realidade na possibilidade” (1993, p. 432). Nesse contexto, o que se explicita é a responsabilidade como o ápice da subjetividade, enquanto eixo nodal da singularidade humana. Como atribuir estatuto filosófico ou antropológico a uma concepção de ética sem a pressuposição de uma comunidade ideal do discurso, sem prescrição, sem fundamentação, sem normatização, centralizada apenas na radicalidade da substituição por um outro?  Se a única realidade que existe para o indivíduo singular é sua própria realidade, as outras realidades, os outros homens não seriam reduzidos a objetos ou possibilidades da realidade, portanto, em seres abstratos?

Se a segunda ética identifica-se com a interioridade como descrito no Pós-escrito conclusivo; se “o amor é uma determinação da subjetividade” (1993, p. 327) é possível afirmar que o fundamento da ética da alteridade é o amor. É difícil entender o paradoxo que o amor, ao converter-se em mandamento do tu deves amar, adquire, de uma parte, o estatuto de uma ética formal, embutida no mandamento de amar ao próximo como a si mesmo e no amor como o pleno cumprimento da lei. De outra parte, discute-se a impossibilidade da validade ou da fundamentação do mesmo estatuto, pois o amor não pode tornar-se objeto do seu próprio conteúdo, isto é, o amor não é refém de uma ordem ou de um dever.

            Esta é a condição do risco, do salto. Não tem uma garantia prévia, não existe um manual de ética. Esta dimensão da aposta na ética, que faz lembrar a aposta de Pascal, encontra-se no Pós-escrito: “se alguma coisa no mundo pode ensinar a um homem a arriscar, esta é a ética que ensina a arriscar tudo por nada” (1993, p. 337). Só no interior desta perspectiva é possível superar a ética do dever kantiano e edificar a segunda ética “como a esfera absoluta e por toda a eternidade a coisa suprema” (1993, p. 337). Continuando, o filósofo afirma: “a ética é e será sempre a tarefa suprema que é colocada para cada homem”. (1993, p. 339)

            A proposta é tornar-se, no movimento de concretização de si mesmo, a própria ética, ao escolher (âmbito do estético e do ético geral) e decidir tornar-se, autenticamente (âmbito da segunda ética), um si mesmo ou negar-se a si mesmo[5]. Aqui, estamos diante da máxima relação entre subjetividade e ética. Kierkegaard. Somente na adesão da subjetividade, enquanto radicalidade ética, o homem poderá tornar-se um homem verdadeiro. Para existir em carne e osso é preciso vivenciar este compromisso denominado de amor enquanto gratuidade absoluta para com a dignidade do Tu e, para isso, é fundamental “nos tornar sóbrios, conquistar a realidade efetiva e a verdade encontrando e permanecendo no mundo da realidade, como sendo a tarefa designada a cada um de nós” (2005, p. 190).

A subjetividade tem uma evolução histórica, perpassa pela subjetividade ontológica que não é capaz de compreender o movimento da singularidade e mantém o intervalo entre o sujeito e o objeto, o pensamento do ser. A Subjetividade econômica, enquanto singularidade localizada no mundo e no relacionamento com o fazer as coisas do mundo, encontra o seu sentido na realização do trabalho e não mais fora dele. O trabalho, segundo Marx, possui uma tríplice qualidade: de me revelar para mim mesmo, de revelar minha sociabilidade e de transformar o mundo. E finalmente a subjetividade ética da segunda ética, que assume, na relação concreta com o imediatamente mais próximo, a condição que permite tornar-se um si mesmo. Essa compreensão de subjetividade tem um percurso que vai da abnegação ao sacrifício radical, do compromisso à substituição.

A subjetividade, em Kierkegaard, é identificada como verdade, interioridade, decisão, ética, paixão infinita e amor[6]. Em síntese: “a interioridade é manter a ética em si mesmo” (1993, p. 540). É este o locus de onde analiso e compreendo a subjetividade, para evitar complicações. Decididamente, subjetividade, para Descartes, Kant e Hegel é uma compreensão e para o autor dinamarquês é outra. Kierkegaard discorda da interpretação da subjetividade na forma imanente do “eu pensante” de Descartes, ou do “eu inteligível” de Kant. Essa concepção reduziu a subjetividade ao pensamento abstrato, desencarnado e representativo, com todas as consequências para os sistemas filosóficos posteriores. A presente citação distingue e me permite encaminhar a investigação dentro dessa delimitação temática.

 

o pensamento objetivo não tem nenhuma relação com a subjetividade existente, e enquanto subsiste o difícil problema de saber como o sujeito existente, se insere nessa objetividade, onde a subjetividade é a pura subjetividade abstrata (o que é ainda uma determinação objetiva e não determina algum homem existente). Agora se torna claro que a subjetividade desaparece e ao fim, supondo que fosse possível para um homem se tornar uma coisa símile e não se tratasse de um jogo de imaginação, que reduz ao puro ser, a pura e abstrata consciência e ao saber dessa relação pura, entre ser e o pensamento. Esta identidade é uma tautologia, porque com o ser não se afirma que aquele que pensa é, mas propriamente que ele é pensante (1993, p. 325).

 

Considero satisfatória a distinção da subjetividade efetuada por Kierkegaard. Na objetividade e na universalidade do conceito, o Indivíduo Singular (den Enkelte) é dissolvido, é despersonalizado de sua estrutura íntima, isto é, não existe uma responsabilidade pessoal que assuma a tarefa de ser o portador do sentido e a concretização da assimetria ética, o que é o mesmo que afirmar que não existe uma existência autêntica. Nesse sentido, a uma Filosofia do conceito, Kierkegaard propõe uma Filosofia da situação-tensionada A uma Filosofia da objetividade pura e da redução da diferença e da identidade do mesmo, ele propõe uma Filosofia da subjetividade responsável. Qual seria o estatuto dessa responsabilidade capaz de assumir a si mesmo como alteridade do primeiro Tu como condição de conquistar e concretizar a si mesmo como é desenvolvido na primeira série de As Obras do amor?

 

 

Referências

 

KIERKEGAARD. Opere. Milano: Sanzoni, 1993.

                        . As Obras do Amor. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

                        . O Conceito de Angústia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

                        . Diario do Sedutor. São Paulo: Abril Os Pensadores. 1974ª

                        . A Doença Mortal. São Paulo: Abril. Os Pensadores 1974b.

                        Diario. Brescia: Morcelliana, 1980.

                        .  Enten-eller. v. V. Milano: Adelphi Edizioni, 1989.

                        .  Enten-eller. v. II, 3ª edição. Milano: Adelphi Edizioni, 1990.

WAHL, Jean. Études Kierkegaardiennes, in la théorie de l’existence. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1974.



[1] KIERKEGAARD. Ponto de vista de minha obra de escritor. Lisboa: Edições 70, 1986.

[2] Arne Grøn no artigo Le probleme de la subjectivite analisa o problema da subjetividade e a subjetividade como problema em Kierkegaard.(GRØN apud MESSAGE, 1990, p. 41)

[3] Cf. Jean Walh. Études Kierkegaardiennes, especialmente o capítulo intitulado la théorie de l’existence. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1974.

[4] O próprio Kierkegaard em As Obras do Amor determina: “quando, pelo contrário, se deve amar o próximo, a tarefa existe (a tarefa ética), a qual, por sua vez, é a fonte original de todas as tarefas. Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético” (KIERKEGAARAD, 2005, p. 70).

[5] Kierkegaard, na obra A Doença Mortal, descreve as várias possibilidades que o desespero se apresenta na existência humana. 1 – Desesperadamente querer tornar-se um si mesmo; 2 –Desesperadamente não querer tornar-se um si mesmo; 3 – Desesperadamente não ter consciência de se ter um eu.

[6] “Se a subjetividade é a verdade, e a subjetividade é a subjetividade existente... a subjetividade culmina na paixão” (KIERKEGAARD, 1993, p. 383); “então se a subjetividade, a interioridade é a verdade” (KIERKEGAARD, 1993, p. 370); “a paixão do infinito é precisamente a subjetividade e assim a subjetividade é a verdade” (KIERKEGAARD, 1993, p. 368); “a paixão é precisamente o vértice da subjetividade” (KIERKEGAARD, 1993, p. 366).

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