FRANSMAR COSTA LIMA : "ALTER E EGO: Uma reflexão ética entre Kafka e Kierkegaard"
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* Fransmar Costa Lima é bacharel e licenciado em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pertence à SOBRESKI – Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard. Atua como professor de filosofia nas redes pública e privada de ensino no Estado de São Paulo, e atualmente desenvolve projeto de mestrado na condição de aluno especial na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

RESUMO

Pretende-se através desta comunicação apresentar e discutir alguns aspectos éticos, em uma perspectiva subjetiva, nas obras do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard e do escritor tcheco Franz Kafka.

Kierkegaard, por muitos considerado pai do existencialismo moderno, vislumbra a ética em diversas perspectivas inerentes à individualidade e subjetividade. O contexto histórico no qual se configura, proporciona a reflexão indireta a partir de alguns textos pseudonímicos. Por outro lado, Kafka busca a expressão do oculto. Em textos como "O Processo" e "A Metamorfose", o autor aborda a ética social diante da individualidade e dos sistemas sociais. Tal relação, é o objetivo último de nosso trabalho.

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No prefácio da edição de 1945 do Journal Intime de Franz Kafka, Pierre Klossowski aponta uma possível atração do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard sobre o escritor checo. Esta relação é possível diante de algumas características biográficas comuns aos dois autores.

Apesar de demonstrar profunda afeição por seu pai, Kierkegaard por várias vezes considera-se o “filho da velhice”, sétimo filho das segundas núpcias do comerciante Michael Pedersen Kierkegaard, originário da Jutlândia[1] que, diante do desespero de sua condição na juventude, amaldiçoou Deus. Kierkegaard se refere à este ato em seus diários:

“O horrível que sucedeu àquele homem que um dia, quando criança, ao guardar os carneiros nas planícies da Jutlândia, sofrendo fome e frio, subiu a uma elevação e amaldiçoou a Deus a (sic) esse homem não podia esquecer este fato, embora tivesse oitenta e dois anos” (VII A5)[2]

A lembrança de tal ato acompanhara também por toda a vida o filósofo dinamarquês, que considera-se herdeiro do pecado paterno. Kierkegaard admite o fardo causado em sua consciência pelo ato desesperado de seu pai, acreditando que isto transformara toda a sua compreensão do mundo:

“ Foi então que se produziu o grande tremor de terra, que me impôs subitamente uma nova lei de interpretação infalível de todos os fenômenos. Suspeitei neste momento, que a idade avançada de meu pai não era uma benção divina, mas uma maldição e que os dotes intelectuais de nossa família só tinha sido concedidos para que se precipitassem uns contra os outros. [...] Uma falta devia pesar sobre toda a família, um castigo de Deus devia precipitar-se sobre ela. Nossa família devia desaparecer suprimida pela mão todo-poderosa de Deus, apagada como um ensaio falhado.” (II A805) [3]

Kafka por sua vez, conserva de seu pai recordações infelizes, transcritas principalmente em sua Carta ao pai. Ao princípio deste texto Kafka busca responder, sem susucesso, à sensação de temor diante da figura absoluta e autoritária de seu pai. Diz Kafka:

“Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas conseqüências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento”[4]

As lembranças de Kafka acerca de seu pai detém tanta importância quanto às de Kierkegaard, frente à produção de sua obra.

Ambos os autores estabelecem curiosamente, uma conduta literária que seria, caso analisada pela psicologia, muito mais libertária do que propriamente deliberada. Se Kierkegaard faz uso de pseudônimos para refletir sua subjetividade em muitos de seus textos, na tentativa de ocultar sua persona e o afastamento filosófico, ao mesmo tempo permite que o leitor (que muitas vezes é chamado pelo autor de “meu leitor”) identifique-se com a obra e aproprie-se, conforme sua própria necessidade histórica dos elementos textuais, Kafka usa indiretamente sua própria persona literária para evidenciar que aquilo que pretende-se em seu texto, apesar de subentendido, é expressão de sua própria existência.

“Eu assumi o negativismo de meu tempo, do qual estou além e tão poderosamente próximo, que eu não tenho o direito para lutar mas que até certo ponto eu tenho o direito para representar. Não mais para a positividade magra que à negatividade extrema que se torna positividade, da qual eu não tive uma parte hereditária.”[5]

Notamos que a repressão paterna não permite à Kafka, e ele reconhece isto, a potência suficiente (e potência no sentido nietzscheano, uma vez que Kafka conhecia a obra de Nietzsche) para dar-se ao combate daquilo que ele considera como niilismo europeu, ou a negatividade da cultura européia. Se a vontade do autor checo permanece aquém da ação, transpõe com altivez a representação. A maior parte dos textos kafkianos ataca de maneira direta a cultura européia, fundada na negatividade e, a partir desta extrai a positividade expressionista da individualidade do leitor. Exemplo disto é “A metamorfose”, talvez o texto mais lido de Kafka, onde Gregor Samsa, personagem que em uma bela manhã, “ao despertar de sonhos intranqüilos, percebe-se transformado em um horrendo inseto[6].

Enquanto Kierkegaard, percebe-se envolto em um combate contra toda a cristandade onde, conforme Vergote, todos são cristãos a partir do oitavo dia de nascimento, Kafka sente-se angustiado diante do conservadorismo judaico, e diante de sua angústia religiosa toma por exemplo o próprio Kierkegaard, quando diz em seu Diário que não apenas ele (Kafka) mas também Kierkegaard já havia sido introduzido à vida pela débil mão da cristandade[7], na qual não se segurou, e que o Sionismo da mesma forma, avançava como o vento sem possuir um real sentido para Israel. Ao final de tal comentário, Kafka afirma: “eu sou um termo ou um começo.”[8] De uma maneira figurativa, Deus também é pai, e Kafka não se sensibiliza com o Deus judaico, ao menos com aquele que lhe fora imposto pelo pai. Kafka se manifesta sobre esta questão, em carta dirigida a Milena Josenská, da seguinte maneira:

“Passei a tarde na rua, banhando-me com o antissemitismo popular. Há pouco ouvi dizer que os judeus eram uma ‘turba imunda’. Não é natural que se vá onde a gente é tão odiada. (Não me faz falata para isso nem o sionismo nem o sentimento nacional). O heroísmo dos que, apesar de tudo, permanecem é o das baratas que tampouco podem extirpar-se do quarto de banho.”[9]

Se, de alguma maneira Kierkegaard e Kafka assemelham-se biograficamente (até mesmo no sentido amoroso, Kierkegaard sentindo-se impossibilitado de efetivar seu matrimônio com Regine Ølsen e Kafka angustiado com sua tentativa frustrada de casar-se com Felícia Bauer, a quem dedica a novela A Sentença, de 1912, que trata sobre um noivado impossível), mesmo que com concepções diferentes em virtude de suas metodologias de pensamento, pois Kierkegaard procura oferecer uma transformação existencial para todo e qualquer indivíduo enquanto que Kafka representa seus próprios anseios, a questão ética perpassará a obra de ambos os autores, promovendo uma relação intrínseca entre as figuras do outro e do eu, alter et ego, que nos levam a pensar a ética diante da contemporaneidade. O que pretendemos aqui, não é confrontar o pensamento de ambos os autores e sequer afirmamos que a obra de Kafka seja exclusivamente voltada para o Eu enquanto que a de Kierkegaard seja totalmente dedicada ao outro. O que propomos nada mais é do que uma interação entre as características kafkianas do ego no discurso kierkegaardiano que visa o outro e, para que possamos pensar tal relação, devemos compreender o caminho traçado por Kierkegaard para a ética e a compreensão de Kafka diante do próprio bem.

Diz Kierkegaard: “A ética[10] é, em si mesma o geral[11], e a este título é aplicável a todos. O que de outro modo pode exprimir-se dizendo que é aplicável a cada momento”.[12]

Tomando-se a nota de Jorge Miranda, que enfatiza aqui o uso de Kierkegaard do termo alemão der Ethiske, no sentido de uma ética voltada para o universal, no sentido clássico da filosofia de Kant e Hegel, estranharíamos tal possibilidade partindo de um filósofo que privilegia a ética voltada para o indivíduo. Devemos notar que, em Temor e Tremor, Kierkegaard utiliza o pseudônimo Johannes de Silentio, que é o autor que se cala diante da situação para fazer-se ouvir. Temor e Tremor é um texto que apresenta diversos problemas de ordem ética, inerentes ao paradoxo do absoluto mas, não oferece respostas ou alternativas pois o autor dinamarquês pensa que a apropriação histórica e a autenticidade da ética dar-se-ão no instante conforme a necessidade existencial de cada leitor. Apesar de transparecer parte da intenção do próprio Kierkegaard em seu texto, podemos perceber que o distanciamento pseudonímico dá-se em virtude do outro. Diante da obra, esta é uma ação ética, pois permite que o indivíduo (e também o próprio autor) não perceba o outro apenas como um reflexo do eu mas, que seja autônomo diante de sua própria existência no momento e, dado no instante, o valor aparece aqui como uma nova possibilidade de autonomia fora dos padrões universais propostos por Kant em seu imperativo. A autonomia da razão kantiana, que percebe a história em sua totalidade, a existência kierkegaardiana que, de maneira alguma deixa de ser racional, privilegia o indivíduo no instante.

Considerando-se que Kierkegaard privilegia o reconhecimento do outro, notamos que Kafka busca o outro através da compreensão dos conflitos do eu. Talvez, depois de A metamorfose, o texto mais lido de Kafka seja O Processo, onde o personagem Joseph K, é acusado e condenado por um crime nunca cometido e sequer conhecido. A interpretação de O Processo pode ser feita a partir da perspectiva do próprio eu, se considerarmos que o autor transfigura-se no personagem sendo, ele mesmo, acusador e acusado. Esta transfiguração representa a impotência do eu diante de si mesmo. O nada angustiado de Kafka não permite que o autor aja sobre a justiça ou sequer que encontre a justiça, pois esta encontra-se corrompida pela arbitrariedade de um sistema que privilegia o estabelecimento de sensos absolutos da compleição de bem, em virtude do favorecimento de um sistema corrompido e distante da autenticidade do homem. Diante de tal impotência, o eu oculta-se diante do outro, permitindo não mais do que uma simples representação.

A impotência kafkiana transparece ainda em textos como O Castelo e A Metamorfose. Neste último, a reclusão de Gregor Samsa dá-se em virtude de sua transformação em um inseto monstruoso. A metáfora do inseto representa não apenas a impotência do autor diante da situação que se apresenta como também a descoberta do personagem da ausência de valores ou, em uma perspectiva bastante otimista, da insuficiência dos valores sociais e familiares que se desvelam.

Notamos aqui uma problemática pertinente à Nietzsche, que defende em grande parte de seus aforismos a necessidade de desconstrução e superação dos valores éticos e morais estabelecidos porém, Kafka permanece aquém de qualquer superação e seu personagem em A metamorfose prefere esconder-se, velando sua identidade em virtude do temor dado pela repreensão do comum. Enquanto Nietzsche supera, Kafka reprime.

Se aceitarmos que consiste em um movimento dialético o ato de velar-se e desvelar-se diante da realidade as ações do personagem de Kafka, uma analogia a Kierkegaard poderia ser estabelecida.

É verdadeiro que o filósofo dinamarquês por vezes oculta-se em seus textos mas, mais do que um ocultamento do eu, Kierkegaard, estabelecendo a ironia em seu método filosófico, busca oferecer uma crítica aos sistemas filosóficos absolutos que atigem seu ápice na filosofia do século XVIII especialmente em Hegel.

Se os textos pseudonímicos ocultam, os discursos edificantes revelam. É neles que Kierkegaard oferece sua verdadeira filosofia, ciente porém de que muitos receberão “com a mão esquerda aquilo que é oferecido com a direita” e, sendo assim, a comunicação indireta dada nos textos pseudonímicos deve ser tida como uma possibilidade irônica da manifestação subjetiva do autor. Esta ação irônica de Kierkegaard pode ser também considerada como uma possibilidade ética de revelar o outro a partir do eu.

Para o autor dinamarquês, a ironia é um confinium entre os estádios estético e ético. Não seria então ela uma possibilidade de revelação do outro, percebido como estético frente ao eu ético. É a ironia, associada à comunicação indireta que possibilita o verdadeiro reconhecimento do eu e do outro, uma vez que o outro ético passa a ser percebido como verdadeira expressão de si e não apenas como um reflexo estético do eu.

Pensar a ironia a partir do indivíduo para Kierkegaard implica necessariamente, pensar a relação entre o eu e o outro nas condições próprias de cada indivíduo em sua subjetividade. A famosa citação kierkegaardiana A subjetividade é a verdade não seria totalmente suficiente para apresentar o bem frente ao outro. Torna-se então necessário reconhecer a tensão dialética existente na face distante do autor dinamarquês onde a subjetividade é a não verdade. É diante da não verdade da subjetividade do eu que o outro se revela em sua totalidade, tendo a ironia o papel de fazer revelar o eu ao outro.

Em vista da ética, a possibilidade de revelação do outro, tanto em Kierkegaard como em Kafka, seja por meio do ocultamento do eu ou do simples distanciamento do autor enquanto formador, e assim podemos considerar o expressionismo kafkiano e a comunicação indireta kierkegaardiana, nos remete ao pensamento de que, em tempos onde a discussão política e a própria história humana nos leva a questionar tantas vezes a ética em sua expressão de maior gravidade, ambos tornam-se pertinentes em virtude de, primeiramente, reconhecer no eu as qualidades que devem ser exigidas a partir da convicção ética dada pela representação autêntica do indivíduo e, posteriormente, reconhecer no outro não apenas as configurações pertinentes à sua condição mas também, não tomar para si o desejo de perceber sempre um segundo eu, mas todas as implicações e riscos de sua própria condição e conduta, como possibilidades divergentes e muitas vezes conflitantes de uma existência conturbada e nem sempre construída sobre condições racionais que visam algo além do próprio eu.


[1] Michael Pedersen Kierkegaard nasceu em 1756, em Saeding, a paróquia mais pobre da Jutlândia Ocidental, conforme a biografia apresentada por Ernani Reichman em sua tradução dos “Textos Selecionados”.

[2] KIERKEGAARD, Søren Diários in REICHMANN, Ernani Textos Escolhidos, p.18

[3] IDEM,

[4] KAFKA, Franz Carta ao Pai, Trad. Marcelo Backes.

[5] KAFKA, Franz Jounal Intime, p.22

[6] KAFKA, Franz A metamorfose.

[7] O texto francês traz o termo Christianisme, que aqui traduzimos por cristandade por entendermos estar mais adequado ao pensamento de ruptura kierkegaardiano para com a igreja oficial do estado dinamarquês. A crítica ao cristianismo de Kierkegaard, apresentada no boletim “O Instante”, não visa a derrocada da religião, como pareceria se mantivéssemos a tradução francesa, mas sim o questionamento da religiosidade e sua real valorização a partir da subjetividade do indivíduo. Não encontramos evidência de que Kafka conhecesse a distinção entre os termos “cristandade” e “cristianismo”. Poucas são as referências à Kierkegaard nos Diários do autor checo porém, parece ser bastante abrangente a influência do dinamarquês sobre este.

[8] KAFKA, Franz Journal Intime

[9] KAFKA, Franz Cartas à Milena Trad. Torrieri Guimarães, Livraria Exposição do Livro, São Paulo, p.184

[10] Kierkegaard para referir-se a ética de cunho kantiano e hegeliano, utiliza freqüentemente o neutro abstrato der Ethiske. É importante a distinção entre ética primeira e a ética segunda realizada na obra Conceito de Angústia. (N.T.)

[11] Outro termo abstrato: det Almene, no sentido de “universal”, “geral”, impessoal, como se constata facilmente no contexto. (N.T.)

[12] KIERKEGAARD, S. Temor e Tremor, Trad. Jorge Miranda de Almeida. No prelo. As notas da citação são do tradutor.

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