Helio MACIEL FILHO
São Paulo - Brasil
A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DE SOREN KIERKEGAARD
E SUA RELAÇÃO COM O IDOSO QUE PRATICA ATIVIDADE FÍSICA
1ª Atualização
RESUMO
O artigo aqui apresentado irá descrever dados observados por um profissional de Educação Física, em trabalho de campo, o qual atua com pessoas idosas em um programa de exercícios físicos e reabilitação. De uma forma geral, os idosos que sempre estiveram fisicamente ativos possuem uma história e memória corporal esportiva, construída e consolidada ao longo de muitos anos. Surge assim a necessidade de relacionar todo esse processo histórico, cognitivo e esportivo com o processo existencial, e perceber como todos podem caminhar juntos e se relacionar. Para isso, utilizaremos alguns conceitos da antropologia filosófica existencial de Soren Aabye Kierkegaard, procurando entender melhor o que poderá ocorrer.
Palavras-chave: Exercício Físico. Memória Corporal. Kierkegaard. Existência.
ABSTRACT
SØREN KIERKEGAARD'S PHILOSOPHICAL ANTHROPOLOGY
AND ITS RELATION TO THE ELDERLY WHO PRACTICE PHYSICAL ACTIVITY
This paper will describe data observed by a Physical Education professional, in field work, who works with elderly people in an exercise and rehabilitation program. In general, the elderly who have always been physically active have a sports history and body memory, built and consolidated over many years. Therefore, the need arises to relate all this historical, cognitive, and sportive process to the existential process, and to realize how all of them can walk together and relate with one another. For this, we will use some concepts from Søren Aabye Kierkegaard's existential philosophical anthropology seeking to better understand what might happen.
Keywords: Physical Exercise. Body Memory. Kierkegaard. Existence.
1. Introdução
O presente trabalho tem o objetivo de relacionar alguns conceitos da Antropologia Filosófica Existencial de Soren Aabye Kierkegaard com as respostas observadas no idoso que pratica regularmente um programa de exercícios físicos e reabilitação. Como temos observado constantemente, muitos alunos inativos se apresentam para nós com duas dissociações que precisam ser trabalhadas: uma psicofísica, e outra existencial. Nossa preocupação, neste artigo, é essencialmente com a dissociação existencial.
As respostas corporais positivas que acontecem no idoso, perante o exercício físico, já são bem conhecidas e registradas na literatura por vários autores de grande importância. Dentre essas respostas podemos citar: manutenção ou diminuição do peso corporal, melhora no fortalecimento e alongamento da musculatura esquelética, melhora do sistema cardiovascular, cardiorrespiratório e metabólico, melhora na postura e no equilíbrio, melhora na coordenação motora, melhora na saúde mental, maior integração psicofísica, etc. Entretanto, as respostas existenciais irão precisar de um olhar mais refinado para serem percebidas, compreendidas e trabalhadas, tanto pelo professor responsável quanto pelo próprio aluno. Para isso, utilizaremos alguns conceitos da teoria do filósofo dinamarquês Soren Aabye Kierkegaard.
Kierkegaard nasceu em Copenhague, Dinamarca, no dia 5 de maio de 1813. Foi considerado por muitos como o pai do existencialismo e utilizou-se em seus escritos de temas existenciais, tais como: a estética, a ética, o religioso, a angústia, a ironia, o desespero, o amor, a fé, etc. O existencialismo tem como principal característica examinar o modo de ser do homem no mundo e como esse mundo se manifesta nele. Ambos, homem e mundo, se complementam mutuamente para proporcionar a existência. Dessa forma, se eu não tiver um mundo onde eu possa surgir, pensar e acontecer, não existo.
Para muitos, nossa existência começa bem antes do dia do nosso nascimento, ou melhor, nove meses antes. Na verdade, no momento em que nossas mães sabem que estão grávidas de nós, já somos pensados e imaginados por nossos pais, avós, familiares e amigos e, neste momento, passamos a existir de alguma forma, ou melhor, já estamos tomando uma forma pela imaginação deles durante esses nove meses. Todos terão dúvidas se nasceremos perfeitos, com qual sexo iremos surgir, se seremos baixos ou altos, com olhos claros ou escuros, de compleição magra ou gorda, com cabelo claro ou escuro, etc. Além disso, os pais se preocupam enormemente qual nome dar ao filho, ou a filha, que irá nascer. Ter um nome é de uma importância fundamental nessa categoria do existir, é o nosso passaporte de entrada para nossa existência. Nunca ouvi dizer que uma pessoa não tenha um nome que lhe foi dado logo no primeiro dia do seu nascimento. Nosso nome nos identifica existencialmente, no mundo e para o mundo, e vai nos acompanhar até o fim. Seremos sempre pensados e lembrados em função de nosso nome.
Para outros, ainda, nossa existência seria predestinada mesmo antes do início do nosso processo gestacional. Estaríamos falando de uma essência divina e/ou cósmica, ambas com uma intencionalidade à priori, que prepara e direciona o caminho para nosso nascimento. Assim, essas duas forças, a divina e a cósmica, poderão ser as primeiras articuladoras de todo esse processo.
Contudo, para nosso artigo, nos concentraremos na nossa existência a partir do dia do nosso nascimento. Nossa existência, para poder acontecer nesse mundo atual, tal como o conhecemos, e ser vivida em toda sua plenitude, precisa de um EU físico, um EU psíquico/intelectual, um EU ético/moral, e inevitavelmente, um EU espiritual. Seja qual for esse Eu espiritual, de qualquer religião ou credo, ele surgirá mais cedo ou mais tarde com a finalidade de nos tornarmos cada vez mais espiritualizados. Para muitos existencialistas, o Eu espiritual não seria tão imprescindível, já que a existência iria até o término da vida física. Entretanto, como estamos nos reportando à teoria de Kierkegaard, onde ele mesmo nos relata que o aspecto religioso é necessário para a existência humana, não temos como deixar de lado dois aspectos essenciais: a religiosidade e a espiritualidade. Mesmo que muitas pessoas não exerçam qualquer tipo de religiosidade ou espiritualidade, no pensamento delas essas duas categorias irão estar presentes. O ato de pensar também faz parte da existência humana. Assim, penso, logo existo. Pensamento e existência necessitam-se mutuamente. Além disso, percebemos claramente nas pessoas, principalmente nos idosos, que a religiosidade e a espiritualidade trarão certo conforto no sentido da dimensão pós-morte. No quadro abaixo podemos perceber três componentes essenciais da existência humana:
O EXISTIR
NECESSITA:
Corpo Nome Pensar
De acordo com os conceitos filosóficos de Kierkegaard, três são os modos ou estádios de existência para o ser humano: o estético, o ético e o religioso. Dentro do possível, os mesmos deverão estar integrados, principalmente no idoso. Como o idoso traz consigo uma grande bagagem de vida afetiva, corporal (esportiva), psíquica, ética, moral, social e religiosa, passamos a observar que existe uma forte correlação na teoria existencial de Kierkegaard associada à prática da atividade física, e vice-versa.
Objetiva-se, desta maneira, esclarecer as seguintes questões:
- O exercício físico regular irá alterar minha percepção existencial?
- Uma melhora da percepção existencial me trará mais qualidade de vida?
- A prática regular do exercício físico irá melhorar meu aspecto estético, ético ou religioso?
2. Desenvolvimento
Baseando-se nas anotações diárias, nas observações visuais e no diálogo com os alunos, conseguimos reunir elementos teóricos e práticos para coleta de dados. Dessa forma, a sensação e a percepção física, além da existencial, foram relatadas pelos próprios alunos. Geralmente, a primeira atitude é aproximar-se do indivíduo ou do grupo a ser estudado para que haja uma observação sistemática desses alunos e uma participação rotineira. Quando digo rotineira, quero dizer que o grupo que está sendo aqui estudado compareceu de forma regular e assídua ao longo de duas ou três vezes na semana, com uma permanência mínima de uma hora à uma hora e meia por sessão. Construímos, assim, uma alteridade com o grupo.
Gostaria de esclarecer que quando novos alunos iniciam um programa de exercícios físicos e reabilitação, os mesmos chegam quase sempre com a mesma preocupação: o seu corpo, ou podemos dizer, seu mundo estético. Tanto para os idosos quanto para os mais jovens, existe uma grande preocupação com relação a sua estética corporal. Logicamente que os mais jovens, de uma forma geral, estão mais fixados em adquirir constantemente um modelo de corpo Apolíneo, e nunca perder tal beleza física. Já no idoso, a grande preocupação seria como conviver com certo cansaço, que pode surgir frequentemente, ou com algum tipo de doença degenerativa como artrose, Parkinson ou Alzheimer, mas, da mesma forma que nos jovens, haverá inevitavelmente certa preocupação em melhorar seu padrão estético.
Apesar dos três modos existenciais propostos por Kierkegaard terem uma caminhada pré-determinada, iniciando-se pelo modo estético, passando pelo modo ético e finalizando no modo religioso, existem algumas exceções como Dom Bosco, Santa Tereza de Ávila e São João da Cruz, que desde o início de suas infâncias ou adolescências foram tocados espiritualmente pelo modo religioso, mas, de uma forma geral, a sequência existencial para a grande maioria das pessoas irá percorrer esse caminho, iniciando pelo estético e culminando no religioso.
Se observarmos com atenção, tanto as respostas corporais quanto as existenciais, perante um treino físico, perceberemos que haverá a necessidade de quatro momentos de amadurecimento para que ocorra uma progressão: um primeiro momento do estímulo, um segundo momento da progressão desse estímulo, um terceiro momento do equilíbrio desse estímulo e um quarto momento da estabilização desse estímulo. Todo esse processo de amadurecimento, para passar de uma etapa à outra, precisa necessariamente criar consistência e se edificar. Para que os modos existenciais possam evoluir, é necessário que em cada etapa ocorra seus respectivos processos de amadurecimento. No esquema abaixo, podemos ver que os três modos de existência tendem a uma progressão.
Modo Modo Modo
Estético Ético Religioso
Eu Físico Eu Moral Eu Religioso
Estímulo, Estímulo,
Equilíbrio, Equilíbrio,
Progressão, Progressão,
Estabilização. Estabilização.
3. Os modos existenciais
Para Janzen e Holanda (2012, p.585), no modo estético “o prazer é o alvo da vida; busca-se alegria momentânea, onde somente o agora importa”. Neste modo, a pessoa muda de acordo com as circunstâncias, é instável e não tem muita coerência em sua vida. Preocupa-se exageradamente com sua aparência. Não assume responsabilidade por seus atos e suas escolhas. Resumindo, parece que estamos na infância ou mesmo adentrando a fase da adolescência.
Para Janzen e Holanda (2012, p.585), o modo ético “caracteriza-se pela responsabilidade e pelo dever, onde o casamento é uma obrigação”. A pessoa tende a escolher entre o bem e o mal. Reconhece seus atos e assume responsabilidades que o levam a se preocupar. Idealiza sua existência. Sua vida é governada por normas morais e vive de forma mais consciente. Ela tem objetivos mais realistas e projeta conquistas. Resumindo, parece que estamos saindo da adolescência ou mesmo adentrando a fase adulta.
Para Janzen e Holanda (2012, p.585), o modo religioso “caracteriza-se por profunda relação com Deus, vive sua atenção voltada ao eterno e prioriza a humildade”. Envolve-se essencialmente com a fé e tem acentuada consciência religiosa que o leva a uma grande experiência da interioridade. Questiona inclusive que está preso ao seu corpo e assim não poderia viver completamente na eternidade. Resumindo, parece que estamos saindo da fase adulta e adentrando a velhice.
4. O início dos treinos
De uma forma geral, o aluno idoso, inativo, chega para nós com seu corpo em estado bruto, pesado, como uma matéria em estado de caos e de desequilíbrio. O mesmo precisa ser trabalhado, lapidado, refinado, para conseguir evoluir fisicamente. Da mesma forma, os aspectos existenciais também precisarão de nossa atenção para que consigam realizar seu processo de evolução e integração. Para Arcuri (2004, p.21), “os trabalhos corporais tanto funcionam para oferecer ao corpo alguns estímulos, quanto para desbloquear e permitir que ele se expresse mais livremente”. O corpo do idoso precisa ser trabalhado para que haja um desbloqueio de certas couraças musculares, as quais foram acumuladas ao longo de muitos anos. Fazendo uma associação do corpo do idoso com os modos existenciais propostos por Kierkegaard, podemos imaginar que esse corpo participa também de três momentos distintos: o corpo estético, o corpo ético e o corpo religioso, e os mesmos precisam ser integrados na medida em que os treinos físicos forem acontecendo. Segundo Kierkegaard (1968, p.138-139), “o corpo é o órgão da alma e, por isso, também o do espírito”. Como meu corpo é o meio que utilizo para estar e acontecer no mundo preciso pensar nele como meu veículo existencial. Na ilustração abaixo, podemos relacionar também o corpo do idoso aos três modos existenciais propostos por Kierkegaard:
Corpo Corpo Corpo
Estético Ético Religioso
Modo Estético Modo Ético Modo Religioso
Ocorre que ao iniciar os treinos, de uma forma geral, os alunos se preocupam com sua aparência, mostrando que o modo estético está naquele momento prevalecendo. Digo naquele momento porque os modos existenciais geralmente irão se alternando. Existem momentos da nossa vida que nos comportaremos e pensaremos de forma mais estética, em outros seremos mais éticos e, em outros ainda, mais religiosos, mas de uma forma geral, no idoso, eles tendem a caminhar juntos. Não vou conseguir ser somente uma pessoa estética a vida toda, vou precisar da ética e da religião para avançar existencialmente.
Na medida em que os treinos vão avançando, depois de aproximadamente uns três ou quatro meses, ouvimos dos próprios alunos que muita coisa está mudando. Observamos nos alunos, que seus movimentos corporais estão mais uniformes, refinados e precisos. Além disso, os alunos nos relatam que seus movimentos estão mais leves.
Com o passar do tempo, já numa fase posterior, quando o aluno já tem boa assiduidade aos treinos, estarão ocorrendo certas alterações físicas, psíquicas, existenciais e de socialização que irão proporcionar ao aluno adentrar mais facilmente no modo ético. As melhoras nas respostas fisiológicas, a imagem corporal mais estabilizada e a relação do aluno com o outro, com os outros, ou mesmo com o professor, irão fazer com que os alunos caminhem com mais segurança para o segundo modo existencial proposto por Kierkegarrd. O modo ético, para conseguir alcançar um bom desenvolvimento, necessita que o aluno aprenda a se relacionar muito bem com seu próprio corpo, com seu padrão de movimento e, principalmente, com seu entorno social.
Segundo Blanc (2003, p.62), a tarefa do indivíduo ético “é construir sua personalidade (sua interioridade), levando em conta o fato de que está em sua natureza ser razoável e sociável”. O mundo externo, o outro, e o grupo, ajudarão de forma imprescindível na transformação desse modo existencial.
De acordo com Regina (2016, p.213), “o homem é um relacionamento que se relaciona consigo mesmo, e ao relacionar-se consigo mesmo, relaciona-se com um outro”. Relacionar-se dessa maneira significa dar forma e proporcionar concretude na estabilização do modo ético.
Para Sganzerla et al. (2012, p.206), “a sociedade age sobre cada um de seus membros e essa é a condição para nos tornarmos propriamente humanos”. Sabemos que o desenvolvimento da ética depende também de um processo de construção contínuo que será influenciado por vários fatores, tais como: aonde nascemos, como fomos criados, quem nos criou, se frequentamos uma boa escola, como eram nossos professores e amigos, com quem convivemos afetivamente, como eram meus parentes mais próximos, como se configura nosso entorno social, como sou influenciado pelos fatores culturais, etc. Notadamente, pelo fato do modo ético se situar entre o estético e o religioso, ele terá a função de equilibrar e intermediar esses outros dois modos de existência podendo, inclusive, influenciar ou ser influenciado. O modo ético se tornará o grande catalisador dos modos existenciais.
Ainda para Sganzerla et al. (2012, p.212), “a sociedade age sobre seus membros modelando seus modos de ser, pensar, sentir e agir”. Para que o aluno consiga diminuir parcialmente sua dependência do mundo estético e evoluir para a fase posterior, da ética, é necessário que haja um aumento nas representações e responsabilidades, individuais e coletivas. Dar um passo em direção à ética e a moral significa abandonar uma natureza egoísta que muitas vezes predomina no mundo estético. No quadro abaixo podemos perceber como as três principais fases de um treino, se relacionam com o tipo de movimento e com os modos existenciais propostos por Kierkegaard:
TREINO TIPO DE MOVIMENTO KIERKEGAARD
Fase Inicial ===== movimentos são pesados ===== Modo Estético
Fase Intermediária ===== movimentos são refinados ===== Modo Ético
Fase Avançada ===== movimentos são leves ===== Modo Religioso
No modo religioso, ouvimos constantemente a preocupação dos alunos idosos, através de suas falas, com relação ao transcendental e ao sagrado, ou mesmo suas preocupações com relação ao seu final de vida. A dúvida cresce para esses alunos quando geralmente fazem o seguinte questionamento: “para que tanto exercício se não vou viver muito tempo”. Logicamente que explicamos a eles que o exercício somente vai ajudá-los a ter uma qualidade de vida melhor e que nós não temos controle total sobre o nosso corpo ou nosso destino. Ao mesmo tempo, eles nos questionam dizendo que possuem um corpo cansado, e que as dores aparecem do nada e demoram muito para passar. Kierkegaard já demonstrou, através de sua teoria, que os modos existenciais caminham em direção a uma última etapa, o modo religioso.
Para Kierkegaard (1968, p.109), “a existência do homem sempre tem uma disposição religiosa”. Nesta categoria da existência, percebemos que a fé tem um papel fundamental quando comparada com estética e a ética. Ainda em Kierkegaard (1984, p.140), “a fé começa precisamente onde acaba a razão”. A fé pertence unicamente à categoria da religião e da espiritualidade. Podemos perceber claramente, pela fala dos alunos idosos, que existe uma grande preocupação com relação à religiosidade e a espiritualidade, levando a um interesse maior pelo desenvolvimento da interioridade. Segundo Reblin (2008, p.118), “a existência humana é marcada pela temporalidade, mas, no instante em que a autoconsciência e a autodeterminação assumem o controle, o ser humano vislumbra o eterno”.
No âmbito esportivo, temos observado constantemente que quando as socializações, as oportunidades e as responsabilidades atuam de forma mais acentuada sobre o modo estético, a pessoa avança com mais segurança em direção ao modo ético. Da mesma forma, quando a fé desperta e atua de forma mais incisiva nas relações com o modo ético, a pessoa avança mais confiante e fortalecida em direção ao modo religioso. A fé poderá surgir de uma vontade e uma necessidade espontânea e não se manifesta da mesma maneira para todas as pessoas.
Na figura abaixo podemos perceber que uma ótima evolução existencial levará a uma forte interseção entre os modos existenciais. Essa configuração geralmente é a esperada na pessoa idosa, onde os três modos tentam permanecer integrados fazendo com que haja grandes benefícios existenciais.
Modo Modo Modo
Estético Ético Religioso
Eu Físico Eu Ético/Moral Eu Religioso
SOCIALIZAÇÕES
OPORTUNIDADES FÉ
RESPONSABILIDADES
Segundo Kierkegaard (1984, p.151), “o paradoxo da fé consiste em que há uma interioridade incomensurável em relação à exterioridade”. Aproveitando esta brilhante citação de Kierkegaard, podemos compreender verdadeiramente que o que ele quer nos dizer é que depois que o aluno passa pelo primeiro modo existencial, no qual ele se preocupa enormemente com sua exterioridade, ele caminha em direção ao segundo modo, o ético, e finalmente ao terceiro modo, o religioso, e nesses dois últimos modos a preocupação se volta quase que totalmente a um processo de interioridade. Sendo assim, o profissional que está responsável por seus alunos idosos deve compreender que num primeiro momento, o trabalho estará focado numa exterioridade existencial e que, posteriormente, o foco passará a ser a interioridade. Proporcionar a expansão da interioridade é fazer com que o aluno se torne mais autêntico. Tornar-se autêntico é proporcionar um caminho que irá levá-lo ao processo de individuação. Para Cechin e Oliveira (2013, p.146), “quando o homem consegue ser autêntico, num verdadeiro processo de individuação, ele consegue ser feliz”. O processo de individuação, postulado por Carl Jung (1974, p.525) corresponde “ao processo de constituição e particularização da essência individual”. Na figura abaixo podemos ver que além da interseção que ocorre entre os modos existenciais, ocorrerá também um caminhar que se inicia pela exterioridade e se direciona fortemente à interioridade.
Modo Estético Modo Ético Modo Religioso
Corpo Estético Corpo Ético Corpo Religioso
Exterioridade Alta Interioride leve Interioridade Alta
Gostaria de trazer dois casos que foram presenciados por mim e que servirão para ilustrar o que estamos mostrando sobre o modo religioso. O primeiro caso seria de uma aluna idosa que esteve comigo em um programa de reabilitação por aproximadamente dez anos, e que estava com uns oitenta anos de idade naquele momento. Era uma aluna exemplar, muito dedicada e inteligente. Conversávamos sobre tudo, desde política, sociedade, família, amigos e religião. Certa vez perguntei a ela como era sua religiosidade, no que ela acreditava, ou mesmo, se não acreditava em nada. Ela me disse categoricamente, por várias vezes em nossas conversas, que não acreditava em nada, em nenhum Deus, que não tinha esperança alguma e que depois que as pessoas morrem, tudo acaba. Tínhamos sempre bons bate papos com relação a esse tema até o dia em que comecei a reparar que ela sempre vinha com uma corrente pendurada no pescoço, na qual continha um santinho com um crucifixo. Não perdi tempo e perguntei a ela porque estava com aquela corrente, já que não acreditava em nenhum Deus. A resposta dela foi a seguinte: “bom, isso aqui é para me garantir, vai que eu estou errada e Deus existe mesmo”. Esse exemplo mostra que mesmo ela não acreditando em nada, o modo religioso estará sempre presente. Era uma mulher que já havia vivido muito num mundo estético e ético, mas ainda não tinha certeza absoluta com relação a sua fé, ou mesmo não a havia encontrado, percebido ou desenvolvido essa forma do existir. O segundo caso foi em um pronto socorro de hospital psiquiátrico situado na cidade de São Paulo. Eu estava ao lado de uma sala do pronto atendimento onde pude ver que existia um paciente que estava bem alterado e pelo fato desta alteração, os enfermeiros tiveram que prender pernas e braços deste paciente, na posição deitada, para que o mesmo fosse medicado. O paciente gritava em voz alta, a seguinte fala: “Jesus me tira daqui, vem meu senhor; agora é a hora, eu o evoco para que desça aqui e me tire desta situação. Não quero ficar amarrado, Jesus desce aqui agora e me ajuda. Preciso do senhor agora”. Trago esses dois casos para mostrar que o aspecto religioso faz parte da nossa existência, mesmo que para todos não seja acompanhado com a mesma intensidade de fé.
Neste momento, também me recordo de uma frase escrita na casa de Jung, em Küsnacht, Suíça, que dizia o seguinte: “Invocado ou não, o Deus terá estado presente” (Dunne, 2012, p.46-47).
Ou mesmo as ideias de Otto, quando nos diz:
O sagrado nasce exclusivamente da esfera religiosa, fazendo parte tanto do racional como do irracional, as ideias racionais do absoluto, da perfeição, da necessidade de percepção sensível, e as ideias irracionais nos conduzindo a algo mais profundo que a razão pura, atingindo o fundo da alma, e nos mostrando a ideia do numinoso relacionada a sentimentos puros (Otto,1980, p.148).
As frases, tanto de Jung quanto de Otto, confirmam enormemente a necessidade do sagrado para a existência do ser humano, além de uma constante busca pelos aspectos da religiosidade ou da espiritualidade.
5. Considerações Finais
Diante de tudo que foi exposto, percebe-se claramente que existem grandes aproximações de alguns conceitos da Antropologia Filosófica Existencial de Soren Kierkegaard, com a prática regular de atividade física em idosos. A prática regular do exercício físico irá proporcionar um aumento da percepção existencial, corrigido-a se necessário e fortalecendo a interseção entre os três modos existenciais propostos por Kierkegaard. Ambos os conceitos, o corporal e o existencial, quando bem percebidos e utilizados, tanto pelo professor quanto pelo aluno, podem caminhar juntos e levar a uma melhor qualidade de vida e a uma maior compreensão do mundo em que vivemos.
Nossa existência, para acontecer de fato, necessita obrigatoriamente de um corpo físico, um nome e o pensar. Os três juntos me ajudarão a transitar existencialmente pelo mundo, podendo, inclusive, deixar sua marca na história da humanidade. Enquanto os três estiverem juntos, nossa existência estará acontecendo plenamente.
A prática regular da atividade física, principalmente na população idosa, trará vários benefícios, inclusive existenciais. Não podemos esquecer que, teoricamente, os três modos de existência propostos por Kierkegaard, deveriam estar presentes e agindo ao mesmo tempo na pessoa idosa, mas muitas vezes isso não acontece. Uma atividade física realizada regularmente e com uma boa orientação tem condições de proporcionar uma maior aproximação, consolidação e união dos três modos existenciais.
Todo processo de evolução e amadurecimento, tanto corporal quanto existencial, precisarão acontecer no seu momento certo. Ambos, para poderem avançar com mais confiança e solidez, necessitam num primeiro momento de um estímulo, e posteriormente de suas fases complementares.
O modo estético, apesar de ser o primeiro e grande fator de influência, por si só não basta para que o ser humano avance existencialmente. Enquanto o modo estético se preocupa, principalmente, com seu mundo externo – o mundo das formas e das aparências – os outros dois modos utilizam-se do seu mundo interno para que o ser humano possa evoluir existencialmente. Nosso mundo interno será mais bem percebido e aprimorado na medida em que possuir um bom relacionado com o Eu psíquico/intelectual, proporcionando um grande crescimento e direcionamento do modo ético e religioso. Como podemos perceber, trabalhar com a existência do ser humano é trabalhar na maior parte do tempo com sua interioridade.
Lembramos também que muitas pessoas permanecerão quase na totalidade de suas vidas em seu mundo estético, outras em seu mundo ético e outras, ainda, em seu mundo religioso. Para saúde integral do idoso, isso não é o ideal. O ideal é que os modos possam complementar-se, comunicar-se e estarem atuando ao mesmo tempo.
Há necessidade de aprimorar o modo ético e conseguiremos isso na medida em que tivermos uma boa assiduidade e participação nos treinamentos em grupos, nas atividades físicas desportivas, lúdicas e recreativas. Resgatar o lúdico, o recreativo e principalmente a socialização da pessoa idosa, é de fundamental importância. O modo ético tem um papel fundamental de mediador e regulador entre o estético e o religioso. Sem ele, dificilmente o modo estético poderá avançar e, muito menos, o modo religioso será alcançado. O modo ético, além de intermediar todo esse processo existencial, trabalha para aperfeiçoar uma energia que chega até ele, vindo do modo estético, e a impulsiona em direção ao modo religioso.
No modo religioso, temos a nítida compreensão de que o idoso preocupa-se mais do que nunca em buscar seu fortalecimento interior, indo em direção ao processo da fé. Trabalhar a interioridade é trabalhar a fé. Para conhecermos nossa fé, primeiramente temos que permitir que ela se manifeste. Quando o estético e o ético não conseguem mais proporcionar determinado fortalecimento existencial, surge uma força e uma vontade que nos conduzem na direção de um aperfeiçoamento do modo religioso, edificando, estruturando e consolidando, que é a nossa fé.
A proposta existencial, aqui descrita, parece bem clara no sentido de que a existência humana procura percorrer um caminho de aperfeiçoamento, evoluindo em direção ao aspecto religioso, transcendental ou etéreo.
Para uma boa saúde física e mental do idoso, há necessidade de harmonia entre os três modos existenciais. Mesmo que a interseção entre os modos existenciais não alcance o nível ideal, o importante é que seja garantido um mínimo nas relações entre os mesmos, levando a uma evolução existencial mais tranquila. O que não podemos deixar acontecer ao idoso, é que o mesmo se perca num vazio existencial, isto é, num vazio onde os modos existenciais propostos por Kierkegaard acabem ficando isolados, muito distantes uns dos outros, perdendo seu direcionamento e seu significado, ou mesmo nunca se encontrando.
REFERÊNCIAS
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